domingo, 9 de abril de 2017

MACÁRIO - Capítulo 6: O Retorno da Menina Veneno

Olá.
Hoje, enquanto escrevo, é domingo, e já cumpriu duas semanas. Hoje é dia de mais um capítulo de minha novela folhetinesca em texto, MACÁRIO. Com ilustrações.
Um aviso ao público que acompanha e tem a paciência de ler estes capítulos na tela do computador e do smartphone: a partir deste capítulo, a quantidade de ilustrações aumentou. No presente capítulo, serão sete ilustrações. Se puderem ler até o fim, tenho mais avisos para dar...
ADVERTÊNCIA: Não recomendado para menores de 18 anos. Contém cenas de violência.



Em vez de ir direto para o meu curso, resolvi, em um impulso de aflição, correr até o hospital, a mochila às minhas costas balançante a ponto de rasgar e derrubar todo seu conteúdo na calçada.
Queria entender a história toda, que foram me contando a conta-gotas. Por que a Viridiana veio me procurar, só para me atacar? Deixar aflorar seu ressentimento para comigo no possível sofrimento pelo qual a Valtéria pode estar passando? Só havia um motivo de alívio naquele momento: receber a notícia de que Valtéria estava bem, havia sido vista andando pela faculdade. Não disseram se ela esteve atacando alguém, sugando seu sangue. Só disseram que ela esteve na faculdade à minha procura.
Mas o que, exatamente, eu fiz para que a Viridiana, parceira de quarto de Valtéria e minha ex-parceira de sexo, viesse me agredir? Dizer que eu “influenciei sua mente”?
Viridiana e os dois colegas, que estavam comigo no momento em que recebi as notícias, foram atrás de mim.
Valtéria foi atacada. Como assim? Numa hora, disseram que estava bem; noutra, que estava no hospital. Não ia conseguir fazer mais nada nesta vida se não conseguisse compreender toda essa história. Se não conseguisse ao menos ver Valtéria.
Na portaria do hospital, dei de cara com Maura, a enfermeira. Quase colidimos.
- Uoah! Macário! Puxa, de novo, hein?!
- Maura!
- Conseguiu descansar nesses dois dias?
- Não! Ainda mais agora!
- Hein?
- A Valtéria! Disseram que ela voltou aqui para o hospital!
- Ah... a sua loira? A garota com quem...
- Não enrola, moça! Onde está ela?! – gritei, agarrando os braços de Maura. – Por que todos hoje estão tirando para esgotar minha paciência?! Por que ninguém me explica logo o que está acontecendo?!
- Macário, o que está fazendo com ela?! – grita Viridiana, atrás de mim.
- Por favor, não me morde!... – exclama Maura, com olhar de piedade, amedrontada.
Quando percebi o que estava fazendo – já estava a ponto de tentar quebrar os braços de Maura – parei e procurei me acalmar. Respirei fundo. E soltei Maura. Como assim, “não me morde”? Eu já estava assumindo o olhar feroz de vampiro?!
- Ahn... desculpe, Maura... Estou nervoso, e...
- Puxa, Macário... – ela falou, assustada. – Você queria quebrar meus braços?! É tanta preocupação assim com a sua loira?
- O nome da “loira” é Valtéria! – exclama Viridiana.
- Ah, você também a conhece, moça? A loi... digo, Valtéria? – pergunta Maura, se dirigindo a Viridiana.
- É minha amiga. – responde esta, séria. – Minha colega de quarto. Amiga de infância muito querida...
- Bem, que me importa saber disso... e que importa para ele? – responde Maura, galhofeira, me olhando de soslaio. Se recuperara rapidamente do susto, menos mal. – Para ele, é só mais uma garota, não? Como eu, que também caí nas “garras” dele...
- Você?! Você... com esse canalha?! – exclama Viridiana, com sincera indignação. – Você com esse... assassino?!
Assassino?! Agora Viridiana pegou pesado. Está bem, quando saímos e transamos, não foi um evento feliz, do qual até mesmo eu não gosto de lembrar (mas não que tenha sido a pior experiência; no máximo, foi só uma das piores), mas para que descontar em mim depois de pouco mais de um mês? Tão duradouro assim é esse rancor? Eu te engravidei, Vi, é isso? (engoli em seco só de pensar nisso...) Não, não a engravidei não, eu lembro que usei três camisinhas na ocasião, sim (não todas de uma só vez, é claro, uma para cada “investida”), e tenho certeza de que nenhuma estava furada. E a barriga dela, enxuta e exibindo músculos de ginástica, nem se mostrava crescente, arredondando aos poucos, nem o piercing começou a saltar para fora do umbigo... Vou te contar, se dependesse dessa garota, e desse olhar de indignação, ou mesmo dessa gritaria toda, eu nem estaria mais na faculdade, seria uma persona non grata aqui.
- Assassino? – pergunta Maura. – Como assim, assassino? Isso o Macário não é, ele pode ter seus defeitos, mas assassino ele não é...
- Claro que é! Um assassino, criminoso, ladrão de corações! Um canalha! Um...
- Vi!!! – intervi na conversa. – Por favor! Se eu não entender a história, como saberei do que você está falando?! Como assim, influenciei a mente da Valtéria? Como assim, assassino?!
Mas a resposta não veio de imediato: fomos interrompidos de novo.
- O que está havendo aqui? – falou um médico, vindo até a portaria do hospital. O mesmo médico que fez o diagnóstico quando saí do hospital.
- Doutor! – vim até ele, aflito. – A garota que foi atacada junto comigo! Soube que ela voltou para cá, e...
- Atacada?! Junto com você?! – foi a vez de Viridiana exclamar. – Aah, eu sabia, assassino, que você teve algo a ver com o comportamento estranho da Valtéria! E com o ferimento no pescoço dela, seu...
- Compor...
- Acalmem-se, todos! – ordenou o médico. – Estamos em um hospital, sabiam?! Se puder passar em minha sala, meu jovem, poderei ir respondendo todas as perguntas que eu puder responder. Aliás, foi bom você aparecer, quero mesmo dar uma olhada na ferida em seu pescoço...
Segui o médico até seu consultório particular, Maura atrás. Viridiana foi orientada a esperar na recepção. Se acalmasse, tomasse uma água. Aí, quem sabe, ela pudesse responder às perguntas que eu tinha. Ainda bem que não tinha mais ninguém na recepção naquela hora. Pelo jeito, a saúde na cidade – e no país – passava por um bom momento: ninguém esperando por atendimento naquela hora, no Hospital Universitário, público. Os que vieram para serem internados, já foram internados. Estava tudo muito tranquilo naquele ambiente hospitalar. Decerto daqui a alguns minutos aparece alguém, mas ninguém para assistir ao espetáculo insano que Viridiana estava promovendo. Quer dizer, apenas a recepcionista ali no balcão junto à porta, mas ela, por dever profissional, se manteve indiferente a uma acusação de assassinato – sem haver, formalmente, assassinato. Ora, assassino...
A porta do consultório foi fechada – só o médico, Maura e eu lá dentro. A mochila repousava em cima de uma cadeira extra, nenhum sinal de danos por causa da corrida. Enquanto descolava a atadura em meu pescoço e examinava as marcas (na atadura em meu nariz ele não mexeu), o médico ia contando:
- Bem, foi uma surpresa quando a moça deu entrada no hospital de novo, três dias depois de fugir do leito. Deu entrada hoje à tarde. E desta vez voltou com ferimentos maiores que os de domingo.
- Ferimentos?!
- Ela estava com arranhões e mordidas enormes por todo o corpo. Arranhões e mordidas feitos por animais.
- Arranhões... de... – estava assustado, os olhos prestes a saltar das órbitas de tanto que os arregalei.
- Foi a amiga dela que a trouxe, desta vez. Digo, foi ela quem chamou a ambulância e veio com ela para... Hã, parece que é aquela mesma, a que estava gritando com você. – foi a vez de Maura contar. – Veio contar que a encontrou toda machucada, perto de uns animais mortos. Ela diz que foi impressionante.
- Impressionante como?!
- Aparentemente, foi a loira quem matou os animais, com as próprias mãos. Foi o que a moça amiga dela disse. Não, mas eu não acredito que tenha sido ela, não mesmo. A loira lá não tem jeito de quem pode fazer cinco cães e três gatos de rua em pedaços, e com as próprias mãos.
Cinco cães? Três gatos? Com as próprias mãos?! Não é possível que...
- Fique tranquilo, rapaz. Deve ser boataria, sensacionalismo. Ela decerto foi é atacada pelos animais raivosos, e alguém os tenha matado quando foi salva-la, indo embora logo depois, digo, se é verdade que os animais também foram mortos. Mais um mistério, hein? Ah, ah... – ele riu de novo, daquele jeito que eu já odiava. – Além do mais não foram ferimentos tão graves. Os cortes na pele foram mais superficiais. Apenas o caso de fazer uns pontos, uns curativos... Mas ela está em condições de sair andando sozinha, apesar de ela ter ficado praticamente feito uma múmia, fique tranquilo.
- Isso é motivo para ficar tranquilo?! – pergunto, indignado.
- Como não? Se ele tivesse mesmo matado aqueles animais, né...? Ou se ela tivesse sido devorada pelos animais... Mas ela está viva, não é mesmo? Bem... mas e quanto a você? Manifestou já algum sinal de...
- Não. Nada. – respondi com toda a calma que pude encontrar dentro de mim. – Fiquei em casa três dias e não sinto nada errado. Estou comendo e bebendo normalmente, comida normal. Não matei nem os meus pais, nem nenhum animal inocente. Errado mesmo, só o ferimento no pescoço, o vazio no coração – suspirei – e a atitude de algumas pessoas perto de mim. Mais alguém sabe que...?
- Não. O que aconteceu com vocês fica apenas entre nós quatro. Você, eu, o doutor e a tua amiga escandalosa. – responde Maura. Respondi com um suspiro aliviado, e ela continuou, em voz mais baixa: – Vem cá: você saiu com ela, não saiu? Com a garota que te chamou de assassino...
- Saí... saí, sim. Viridiana. – confirmei. – Foi há... um mês.
- Cara, ela deve estar ressentida mesmo. Que você fez para ela?
- Eu? Foi ela que fez para mim. E deve estar pensando que fui eu que fiz. Só se eu a engravidei e ela não quer me contar. Assassino, eu? O mais que fiz diante dela foi dar uma chinelada em uma barata que invadiu a minha cozinha... – tentei rir desta piada que até eu achei fraca, mas não consegui acompanhar Maura e o doutor, esses sim deram boas risadas.
- Não, gravidez também creio que não. – disse Maura, ainda rindo. – Ela não veio com jeito de que quer que você assuma a paternidade do filho...
- Deus me livre!
- Deixemos isso de lado. – interrompeu o médico. – Bem, essa história de vampiros, mordidas e etc., fica apenas entre nós. Para a polícia, que também está a par de tudo, mas não de tudo, tudo... há hipóteses mais. Já chegaram a aventar que a moça foi capturada e foi vítima de tortura por sádicos, o que pode ser uma boa explicação. A forma de tortura escolhida teria sido soltar cães e gatos famintos em cima dela, que acabaram sacrificados. Explicações plausíveis para o que aconteceu não faltam. Mas estamos tentando fazer o possível para que o caso não caia na imprensa, na boca do povo, então, não há com o que se preocupar, em um primeiro momento. O caso, sabe? É que ultimamente ando atendendo uns casos muito esquisitos. O seu e o da menina são apenas alguns deles.
- Esquisitos? Tipo... mais ataques de... vampiros? – decerto, as rugas em minha testa ficarão para sempre ali, depois dessas notícias todas.
- Não. Digo, não sei direito. Está havendo casos de gente que entra no hospital com ferimentos inexplicáveis. Eu mesmo tratei alguns desses casos. Mas esses casos não estão vindo a público, felizmente, são raros. E também, a maioria dos atacados acaba morrendo e levando a explicação para o que aconteceu para o túmulo, logo é fácil dar uma explicação qualquer para a morte, a menos que resolvam pedir necropsia. Melhor não comentar com ninguém o que estamos comentando com você.
- Hum... pode deixar, doutor, saberei guardar... hum... segredo. A... A Valtéria ainda está aqui?
- Se ela não tiver fugido de novo... – respondeu ele. – Bem... ela está no leito. Ela teve de tomar uma dose forte de calmantes. E ainda vai ter de explicar o porquê de ter fugido do hospital na segunda-feira. Mas dificilmente terá como fugir sem ser percebida, enfaixada daquele jeito...
Eu já estava ficando apreensivo. Não é possível que a Valtéria tenha manifestado sintomas de vampirismo! Cinco cães e três gatos trucidados?! Talvez a Viridiana possa explicar...
- É, rapaz, as suas marcas estão se curando aos poucos. Melhor deixar esses curativos por mais algum tempo. – confirmou o médico. – O do pescoço e o do nariz.
Confuso, resolvi jogar a mochila nas costas e sair do consultório. Porém, mal abri a porta, levo um susto. O doutor e Maura levam um susto ainda maior.
Dois braços envolvidos em faixas me envolvem.
- MACÁRIO!!! – foi o grito que acompanhava.
Valtéria me abraçou, apertado. Ela deveria estar no leito, mas não, estava ali, na porta do consultório do médico, me abraçando. De alguma forma, soube que eu estava aqui. Será que na verdade ela estava no quarto ao lado e ouviu minha conversa com o médico?!
- Macário...
A coitada estava com ataduras envolvendo várias partes do corpo, e algumas não estavam visíveis por causa da camisola hospitalar, a única coisa, além das ataduras, que cobria seu corpo. Os braços estavam quase inteiramente envolvidos, só deixando os cotovelos livres, as ataduras dando voltas nas mãos também. Haviam curativos grudados nas maçãs de seu rosto. E haviam manchas vermelhas em alguns pontos dessas ataduras. Havia mais faixas, com manchas vermelhas, nas pernas e em volta da cabeça. E, demonstrando que estava no leito, a moça vinha, ainda, arrastando o saquinho de soro no chão, o tubo e a agulha ainda presos na dobra de seu cotovelo esquerdo.
- Macário, meu amor... Como eu queria te ver... onde você esteve?!
Fiquei paralisado por um momento. Minha mochila caiu no chão. Mas, no fim, em um misto de alívio por vê-la viva e de pena em vê-la naquele estado, acabei abraçando-a, também, ternamente. O abraço que ela devolvia era igualmente terno e quente.
- Valtéria!
- Macário...
- Estou feliz que esteja bem...
- Não... eu que estou feliz que esteja bem...
- Estive tão preocupado com você... Você ficou em perigo por minha causa...
- Onde você esteve, meu Macário?! Nunca mais suma das minhas vistas, viu?!
Essa não: ela realmente se apaixonara por mim.  Mas sentia algo estranho nessa afeição. Apesar de aliviado por ver Valtéria viva, uma possível paixão por aquela loirinha machucada foi bloqueada... Estive preocupado com ela, sinceramente, mas...
- Ei, ei, ei! – exclama o médico atrás de mim. – Garota! O que você está fazendo fora do leito?
- O Macário está aqui... eu ouvi a voz dele... – Valtéria exclama, apertando-me em um abraço que começou a me sufocar. – Sabia que ele ia voltar. E ele não vai embora! Não!
- Não! – foi a vez de Maura exclamar. – Você deveria estar sedada! Aqueles calmantes todos...
- Que calmantes?! – disse Valtéria, me soltando, afinal, e lançando um olhar atemorizante. – Nenhum calmante vai me impedir de ver o meu Macário! Eu fingi que tomei, escondi os comprimidos sob a língua e cuspi tudo, ah, ah... – e complementou o olhar terrível com um sorriso malvado. Porém, nenhuma presa entre aqueles dentes brancos.
Foi apenas por um breve meio segundo que consegui respirar.
- Mas o quê?... – disse Viridiana, chegando até a porta do consultório, já impaciente de ter de aguardar notícias. – Valtéria?!
- Vi! – exclama Valtéria, agarrando meu braço. – Você viu, não?!
- Macário, insisto! – exclama Viridiana. – O que você fez com minha amiga?! Desde segunda-feira ela está assim, louca por você!!
- Eu... – balbuciei. – eu... eu também estou querendo entender, Vi. Nós...
- Deixe que eu fale... – interrompeu Valtéria, olhando maldosamente para Viridiana. – Eu fiquei com ele. Você disse para eu ter cuidado com ele, Vi, para não cruzar o caminho dele, que ele é, como você disse mesmo?! Ah, um “lobo”... mas eu não te ouvi. Fui falar com ele... Fui para o apartamento dele... Caí na lábia dele, e ele caiu na minha... Ele disse que eu sou gostosa... E nós fizemos amor. O domingo todo. Ele é muito bom de cama. Isso eu já devo ter te contado, não contei?
- Ele... – começou a balbuciar Viridiana, com indignação.
- Você ainda gosta dele, certo? No fundo, você ainda gosta muito dele, certo? – ela continuava sorrindo doentiamente. – Você olha para ele com esse típico ódio de mulher que foi enganada, grita com ele, pensa que eu não ouvi?! Você o chama de lobo, e não quer admitir que a noite que você passou com ele foi a melhor de sua vida. Fica falando mal dele, mas no fundo ainda quer dar pra ele, quer outra noite com ele, né? Mas você desperdiçou este homem maravilhoso, Vi. Você não ficou com ele porque não quis. Saiu no vento, perdeu o assento... Ah, ah... Agora ele é meu, e vou casar com ele.
Oh, não. Valtéria ficou louca!
- C... casar?! – eu disse, apavorado. – Você disse que era brincadeira...
- Agora é sério, Macário. Vamos casar. Agora eu quero casar com você.
- Não, você não vai! – exclamou Viridiana. – Não comece com essa história de novo, Valtéria! Você não vai ficar com esse canalha! Ele não vai te fazer feliz! Ele vai é te trocar por outra garota! Para ele, é uma garota por final de semana! Ele nem te ama! Ele...
- Pessoal! – exclama o médico. – Por favor, estamos em um hospital! Modos! O que está acontecendo, afinal? Que conversação é essa?!
- Oh, Macário, por que você me abandonou? Por que você foi embora do hospital antes de eu poder ver você? Por que você fugiu do hospital?! – pergunta Valtéria, se abraçando ainda mais em meu braço.
- Eu?! – exclamei. – Você fugiu do hospital antes que eu pudesse te ver! Você que andou me matando de preocupação, garota!
- Você... ainda estava no hospital quando eu saí para te procurar?! – Valtéria fazia cara de ponto de interrogação. – Pensei que você já tinha saído...
- E fugiu do hospital! – Maura entrou na conversa, aproveitando também para pegar o saco de soro do chão e mantê-lo erguido para evitar que escapasse. – Quando fomos ver, sua cama estava vazia... Não me diga que você pulou a janela do hospital e saiu pela rua só de camisola hospitalar... E ainda bem que o quarto ficava no nível do chão, se fosse no andar superior... Só me pergunto como ninguém te viu daquele jeito...
- Eu vi. – responde Viridiana. – E creio que só eu vi, Ela teve sorte de só eu ter visto. – e dirigindo-se a mim: – Sabe, Macário... Recebi um telefonema, na noite de domingo, dizendo que ela foi parar no hospital, com um ferimento no pescoço, que perdeu muito sangue... E, no final da tarde de segunda, ela me aparece no nosso apartamento, vestindo apenas camisola de hospital, descalça, suja... E não me explicou nada. Resolvi encobrir esse fato, e deixar que ela ficasse no alojamento, escondida. Mas, durante os dias seguintes, ela faltou ao trabalho e ao curso dela, ficava perambulando pela universidade, te procurando. E, quando estava em casa, só ficava falando a respeito de você. Ela ficava me contando sobre você na cama, que você era bom amante, etc. No que eu não acredito. – Aqui, Valtéria fez um muxoxo. – Não depois da noite que passamos juntos... Maldito sábado que resolvi incluir a Valtéria na nossa turma para ir até a boate!! Ela já não bate bem da cabeça, Macário, você deve ter visto que ela tem alguns problemas mentais, que ela tem algumas atitudes irracionais, por isso me preocupo com ela... E sabe o que ela fez, esta tarde? Quando eu pensava que ela havia melhorado e ia trabalhar... Ela faltou de novo ao trabalho, recebi um telefonema do trabalho dela perguntando se ela estava doente, porque ela não apareceu de novo... Tive de sair do meu trabalho para ir atrás dela. Eu a encontrei por acaso, por sorte. E sabe como a encontrei? Em um beco... toda ferida, mordida, a roupa toda rasgada, nua, suja de sangue... e, em volta dela, uma porção de cães e gatos esquartejados! Contei cinco cães e três gatos, pelas cabeças... E ela ainda estava lambendo o sangue do corpo! Ela estava lambendo o sangue dos cães e gatos que cobria seu corpo! Ela estava feito a Carrie, a Estranha, já assistiu o filme? Lembra a cena que ela ficou suja de sangue? Se você tivesse visto como a minha amiga aí praticamente ficou retalhada... Bem, tive de levá-la ao hospital... E agora está aí... Ainda bem que não falei nada ainda aos pais dela...
Comecei a ficar ainda mais apreensivo. Não, não assisti o filme da Carrie, só vi algumas fotos da tal cena da menina coberta de sangue, mas é suficiente para poder imaginar a cena.
Valtéria não esboçou reação à narrativa; eu suava frio, e Maura, com a mão na boca, já demonstrava ânsia de vômito. O médico estava imóvel, mas tão apreensivo quanto eu.
- Só pode ter sido você, Macário... – continuou Viridiana, com o olhar enviesado para mim. – Você foi o último com quem ela esteve! Fale: foi você que feriu o pescoço dela?!
- Eu?! Vi, claro que não! Eu também fui atacado, também tive o pescoço ferido, está vendo a atadura?! – exclamei, afastando a gola do pescoço. – E te garanto que não fui eu quem...
Viridiana não me deixou terminar:
- Sabe, Macário, essa moça aí tem problemas mentais, já devo ter dito. E eles se acentuam depois que ela faz sexo! Ela se comporta de uma forma estranha toda vez que tem noites de sexo com homens... E eu tenho de ficar de olho nessa maluca, sou a única pessoa em quem ela pode confiar... E agora, você influencia ainda mais a mente dela! Você foi quem mais a influenciou a fazer loucuras! Agora está aí... louca por você, e machucada!
Engoli em seco.
- Bleh! – foi a vez de Valtéria se manifestar, com desdém pela indignação de Viridiana. – Você tem raiva do Macário não por causa de mim, mas porque está com inveja porque quer dar pra ele e não pode! E você, Macário... você me deixa sozinha neste mundo hostil, como pode?! Verdade que você não me ama de verdade?! Olhe só o que os cãezinhos fizeram comigo, com meu corpo... Peraí...
Dizendo isso, ela tira a agulha do soro do braço e depois a camisola. Levo um susto, chego a cobrir os olhos, mas acabei olhando. Todos ali se assustam com o ato tresloucado dela de tirar a camisola na frente de todo mundo, e talvez ficar nua diante de duas mulheres e dois homens, mas não havia motivo para tanto. O tronco estava cheio de bandagens, havia faixas cobrindo os seios, a barriga e a virilha. Os braços e as pernas também estavam quase todos cobertos, só os joelhos e os cotovelos livres para desimpedir os movimentos, mas com curativos quadrados em cima. Valtéria parecia mesmo uma múmia, como o médico havia descrito. Uma múmia egípcia recém-embalsamada e enfaixada para repousar no sarcófago. Exceto o rosto, o cabelo, o umbigo e as articulações, cada canto do corpo de Valtéria estava enrolado em esparadrapo. 
- Fui ferida por cachorrinhos e gatinhos, Macário. Eles tentaram me devorar, e não sei por quê. Mas eu os peguei primeiro, tive de pegá-los primeiro, ah, ah... Não sei como, mas eu os peguei. Quando dei por mim, os cachorrinhos e os gatinhos estavam todos mortos.
E ela falava isso com a demonstração de satisfação típica de um psicopata.
- Mas... mas tem certeza de que foi... foi...
- Só pode ter sido ela mesma, não havia mais ninguém naquele beco! – disse Viridiana. – E que sorte dela que fui a primeira a chegar ali e ver o beco todo sujo de sangue, e ela em pé sobre aquele monte de partes de animais... Só pode ter sido ela, tenho certeza!
- Não... – interferiu o médico – Talvez tenha sido outra pessoa que matou os cães e os gatos...
- Mas ela estava lambendo o sangue! Eu vi!!
- Eu estava? – pergunta Valtéria, se fazendo de confusa. – Não lembro se estava lambendo sangue... Não lembro se fui eu quem matei os animaizinhos, ou se alguém o matou, mas... Se foi alguém, Macário, por que não foi você?! Por que você não estava lá para me proteger?! Onde você esteve todos esses dias?! Por que me deixou sozinha neste mundo cruel?! – e ela se abraçou ainda mais a mim.
Esse exibicionismo já estava me deixando nervoso. Realmente, Viridiana tinha razão: Valtéria tinha problemas mentais (me fez lembrar que, na noite em que fui agredido, quando ela me beijou, também lambeu o sangue que escorria de meu nariz). E, certamente, Viridiana partilhava desses mesmos problemas mentais. Era inacreditável essa história. Me agarrei à hipótese de que foi outra pessoa quem despedaçou os animais, não Valtéria. E procurei retornar ao ponto onde a conversa parou.
- Valtéria – falei, com calma, voltando para ela – eu também estive me recuperando. Estava muito machucado, você mesma viu.
- Por que você fugiu do hospital, Macário, enquanto eu estava dormindo?!
- Perdão, moça – interrompeu Maura. – Foi você quem fugiu do hospital antes dele. Quem te disse que ele saiu do hospital antes?!
- Eu... Eu... Eu devo ter sonhado que me disseram que ele fugiu do hospital e...
- Moça! Ponha a camisola de volta! – exclama o médico. – Onde já se viu, se exibir assim na frente de um homem!
- E praticamente confessa que foi você quem matou os cães! Isso se não foi alguém, mesmo! Que bom que está viva e andando, hein?! – exclama Maura.
Valtéria recolocou a camisola, de má vontade. Um filete de sangue escorria da dobra do cotovelo, do ponto onde ela tirara a agulha do soro.
- Macário, vai explicar o que está acontecendo ou não?! – exigiu Viridiana.
- Explica não, Macário... – diz Valtéria, se agarrando de novo no meu braço. – Em vez disso vamos pro meu leito e vamos fazer amor de novo, aqui mesmo, no Hospital...
O consultório inteiro gelou.
- Valtéria! Pare com isso! – se manifesta Viridiana.
- Vai, Macário, diz que sim... Vamos, eu tiro todas essas faixas e...
Aquilo tudo estava me dando gastura, estava me incomodando bastante. Era muita coisa para minha cabeça. Já estava ficando vermelho. Estava certo de que não estava no hospital da universidade, estava em um hospício, na Casa Verde de Simão Bacamarte (ver “O Alienista” de Machado de Assis).
No fim, resolvi simplesmente me desvencilhar dos braços de Valtéria, jogar de novo a mochila nas costas e sair daquele consultório. Simplesmente dei as costas, suspirando, e me dirigi até a porta, sem gritar nem dizer nada (gritar em hospital não pode, certo?). 
- Macário?!...
- Valtéria. – disse.
- Macário!...
Olhando de soslaio para todos os presentes naquela sala, atônitos, falei, com frieza:
- Valtéria, por favor, fique aqui no hospital e descanse. Tome os calmantes, recoloque a agulha do soro, repouse e se recupere desses ferimentos. Aí conversamos. Viridiana... você, principalmente. Quando estiver de cabeça fria, me procure e vamos conversar. Fique de olho na sua amiga e não deixe ela fazer bobagem. Quero entender a história tanto quanto você. É tudo o que eu te digo. E... Doutor, obrigado. Obrigado, Maura. Ficarei agradecido se nada disso cair na boca do povo. E mais ainda se não descuidarem dessa moça aí.
E saí da sala, sem olhar para trás, ignorando os gritos de Valtéria e Viridiana. Na portaria, dei de cara com os dois colegas, que não nos seguiram até o consultório.
- Macário?
- E aí, como foi?
- Rapazes... vamos para o curso. Já perdi muita aula e muito tempo.
E saí do hospital, sem olhar para trás. Os dois colegas não falaram nada até chegarmos ao prédio do curso de Medicina. Nem depois.

Estava decidido a seguir minha vida, pura e simplesmente, independente das transformações, em meu corpo e minha mente, pelas quais percebia que, aos poucos, estava passando.

O próximo capítulo será indubitavelmente, em 15 dias, já que o próximo domingo será dia santo - inapropriado para publicar capítulos de um folhetim profano...
Ah: e quem acessar o capítulo anterior, de número 5, terá uma surpresa: duas ilustrações inéditas! É provável que novas ilustrações sejam inseridas nos capítulos anteriores, mas avisarei vocês. Mas continua o aviso acima: a partir de hoje os capítulos de MACÁRIO terão mais ilustrações - hoje foi sete, e o capítulo 5 passa a ter seis.
Mas, e aí, como estou me saindo como escritor de ficção longa? Continuo ou paro?
Até o próximo episódio.
Até mais!

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