terça-feira, 29 de novembro de 2016

Livro: MATAR PARA NÃO MORRER

Olá.
Por esses dias, deixei um pouco de lado algumas tarefas que assumi e estive disposto a escrever e a atualizar este blog – repararam na quantidade de postagens seguidas? Pois agora, do presente, onde estive até o momento, resenhando obras recentes, retornamos ao passado, com mais um livro. Retornaremos ao início do século XX.
Hoje, falaremos de livro de História. Hoje daremos uma olhada em uma obra que analisa um fato que, aparentemente, é de pouca importância para a História Brasileira, já que, à primeira vista, nada influi nos rumos do país, mas tem seu valor por se tratar de um crime passional famoso.
Hoje, trazemos de volta aos holofotes uma historiadora brasileira da qual falei há algum tempo atrás: Mary Lucy Murray Del Priore, ou simplesmente Mary Del Priore (apesar do nome, ela é nascida no Rio de Janeiro).
Hoje, vamos falar de MATAR PARA NÃO MORRER.
O LIVRO PERDIDO E ENCONTRADO
MATAR PARA NÃO MORRER – A MORTE DE EUCLIDES DA CUNHA E A NOITE SEM FIM DE DILERMANDO DE ASSIS foi lançado pela editora Objetiva, em 2009. Já falei uma vez de sua autora, a historiadora Mary Del Priore, uma das pesquisadoras mais “pop” do Brasil; o título referido foi Histórias Íntimas, um de seus best-sellers e um dos livros que caracterizam o trabalho da historiadora, pesquisadora e professora universitária: lançar obras históricas de interesse geral, revelando aspectos pouco conhecidos do público médio sobre fatos já conhecidos. Pense em algum grande tema histórico brasileiro, provavelmente Mary Del Priore já deve ter abordado em algum dos mais de 40 livros que escreveu, colaborou ou organizou. Sexualidade brasileira (o já citado Histórias Íntimas); religiões alternativas (Do Outro Lado); Império Brasileiro (O Príncipe Maldito, Condessa do Barral, O Castelo de Papel, A Carne e o Sangue); questão feminina (História das Mulheres no Brasil)... Enfim, Mary Del Priore é uma das autoras que ajudam a tornar a História mais atraente às multidões.
Suas obras mais recentes, depois de Do Outro Lado, são Beije-me Até Onde o Sol Não Alcança, de 2015, e Histórias da Gente Brasileira – Volume 1 – Colônia, de 2016.
A escolha do tema de MATAR PARA NÃO MORRER é, antes de uma simples narrativa do mais famoso caso de crime passional brasileiro, uma oportunidade para fazer um retrato da sociedade do início do século XX, e das ideias correntes sobre família, casamento, papel do homem e da mulher dentro do lar, defesa da honra, etc., dentro de uma sociedade patriarcal e eminentemente masculina. Já volto a essa parte.
Por um momento, cheguei a duvidar da existência desse livro, já que ele não consta na relação de obras no site oficial da autora (http://marydelpriore.com.br/ - que, aliás, já está precisando de uma atualizada). Em uma consulta prévia na internet, encontrei um rumor a respeito de uma polêmica envolvendo MATAR PARA NÃO MORRER – os herdeiros de Euclides da Cunha teriam movido uma ação contra Mary Del Priore por conta do modo como foi abordada a morte do escritor, e a simpatia que a autora demonstrou para com o responsável por essa morte, Dilermando de Assis. Porém, nada formalmente confirmado.
Bem. À parte da capa pouco atraente, e da ausência total de ilustrações que o livro de 176 páginas apresenta, a leitura de MATAR PARA NÃO MORRER é prazerosa e ao mesmo tempo angustiante: prazerosa, por causa da linguagem acessível e por causa do exercício de micro-história feito pela autora, reconstituindo um panorama inteiro de uma época a partir de um pequeno fato, desde as concepções de família até a emergência do futebol no início do século XX; e angustiante, porque não tem como não se sensibilizar com o drama pessoal dos personagens envolvidos, vítimas de uma campanha agressiva movida por uma sociedade de ideologia tacanha, a do Brasil da República Velha (1889 – 1930): essa sociedade não favorecia nem a mulher, nem quem se envolvesse em uma aventura amorosa – ainda mais quando o par já era casado. Época em que a honra de um homem era lavada com sangue; onde a mulher que traía o marido pagava, não raro, com a própria vida, e onde se dava um jeito para que a culpa de tudo caísse na vítima ao invés do agressor – seria a cônjuge que não estava cumprindo com seus deveres de mãe, esposa, rainha do lar.
O jornalista, engenheiro e escritor carioca Euclides da Cunha, sua esposa Ana Emília, o filho mais velho deles, Euclides Júnior, o jovem tenente Dilermando de Assis e o irmão deste, Dinorah de Assis, são os personagens principais de uma trama, tão novelesca que inspirou outros livros e até uma série de TV da Rede Globo, que arruinou as vidas dos membros de uma família inteira.
Mary Del Priore não foi a única a se debruçar sobre o caso: outros escritores e historiadores já trataram da chamada “Tragédia da Piedade”. Até mesmo o próprio Dilermando de Assis já tratara do caso em livro, contando sua versão dos fatos; e até uma das filhas deste, Judith Ribeiro de Assis, já relatara a respeito do caso em outro livro.

A TRAMA DA NOVELA
Muita gente já deve ter ouvido falar da história: no dia 15 de agosto de 1909, Euclides da Cunha invadiu uma casa no bairro da Piedade, no Rio de Janeiro, para tirar satisfações com Dilermando de Assis; fora lá “para matar ou morrer”. Euclides conseguiu acertar dois tiros de revólver em Dilermando – um na virilha e outro no peito, mas sem gravidade – e ainda acertou um tiro nas costas de Dinorah, que também se encontrava no local; mas o tenente conseguiu alcançar sua arma e acabou assassinando Euclides, em legítima defesa. Motivo para tal ato agressivo: o escritor fora traído pela esposa, Ana Emília, a Dona Saninha.
Euclides da Cunha (1886 – 1909) ficou nacionalmente conhecido pelo livro Os Sertões (1902), que trata do relato da Guerra de Canudos (1896 – 1897), o conflito entre o Governo Brasileiro e a comunidade popular fundada por Antônio Conselheiro no interior da Bahia. O livro é baseado na experiência do autor na região, como correspondente do jornal A Província de S. Paulo (atual Estado de São Paulo). Euclides da Cunha, colocado na categoria literária do pré-modernismo ao lado de nomes como Lima Barreto e Monteiro Lobato (quem não fugiu das aulas de literatura brasileira na escola sabe), foi quem tornou nacionalmente conhecida a figura do sertanejo nordestino, marginalizado e sujeito às intempéries de uma região praticamente esquecida pelo governo brasileiro da época, mas que a tudo consegue suportar; ou, nos dizeres do escritor, “o sertanejo, antes de tudo, é um forte”.
Bem. Na época de seu lançamento, Os Sertões foi sucesso de público e crítica. Euclides da Cunha, de um obscuro engenheiro e jornalista, passou a intelectual de pose, sendo, inclusive, eleito membro da Academia Brasileira de Letras.
Porém, na visão simplista que o povo de instrução mediana adotou da História, hoje Os Sertões é considerado um livro chato e difícil de ler, “um catatau bastante preconceituoso a respeito da campanha libertária de Antônio Conselheiro” – sobre essa última parte, há controvérsias por parte dos historiadores “politicamente incorretos”, ou melhor, os revisionistas “da direita” (segundo a turma que ainda se guia pelo marxismo) – e hoje nem é mais considerada a melhor fonte de pesquisa sobre a Guera de Canudos. Em outra oportunidade, eu volto a tratar dessa questão.
Nem Euclides da Cunha, por si, escapa de acusações: a mesma visão simplista diz que Euclides da Cunha era incompetente na vida familiar, só pensava em trabalho e em fama, era excessivamente temperamental e não estava nem aí para a mulher e os filhos. É verdade – em parte.
A parte de ele ser “incompetente” e “só pensar em trabalho” explica por que sua esposa, Ana Emília da Cunha, posteriormente Ana de Assis, traiu Euclides com Dilermando. Em 1904, Euclides partira para o Amazonas, a fim de acompanhar de perto a questão do território do Acre, em vias de ser comprado da Bolívia pelo Brasil; e deixara Dona Saninha sozinha, sem dinheiro, sem lugar para morar com os três filhos, e sem poder contar sequer com a ajuda dos familiares. A mulher, filha de um dos artífices da Proclamação da República de 1889 (que um dia até mesmo reclamara com Euclides do modo como este tratava a filha e os netos), e que vivia uma relação cheia de conflitos domésticos com o marido, fora obrigada a se mudar para uma pensão com o filho mais novo, depois de colocar os mais velhos em um colégio interno. Naquela pensão, ela conheceu, em um dia de 1905, o então aluno da Escola de Guerra do Rio de Janeiro, Dilermando de Assis, então com 17 anos, muito mais novo que Dona Saninha, que contava 34 anos. Dilermando era sobrinho de uma das mulheres que acolheram Dona Saninha na pensão. Os dois acabaram se apaixonando, e vivendo um romance tranquilo, até que Euclides retornou, em 1906, afetado por doenças tropicais e sem ter conseguido reunir nada de relevante, que pudesse lhe render um segundo sucesso comercial. Pior: Euclides não demorou a descobrir o caso, pois Dona Saninha engravidara do amante – que, para desgosto da mulher, tivera de ser transferido, em 1906, para Porto Alegre.
O mais sombrio é que Euclides teria causado a morte do bebê, batizado de Mauro: vários historiadores são unânimes em afirmar que fora Euclides quem matou Mauro de inanição ao impedir Dona Saninha de amamenta-lo. E ainda enterrou o cadáver da criança no jardim.
Algum tempo depois, Dilermando retornou ao Rio de Janeiro. E conseguiu ter, com Dona Saninha, um segundo filho, Luiz, o Lulu, que Euclides de viu obrigado, desta vez, a ajudar a criar. Euclides chegou a ficar, por um tempo, amigo de Dilermando, porém descarregava toda sua raiva em Dona Saninha. E a pressão da sociedade era grande: devido às regras daquela época, Euclides se via humilhado: além de estar doente e de não ter conseguido uma promoção em seu trabalho, como era possível que um intelectual, autor de best-sellers e membro da academia de letras fosse “chifrado” pela esposa, e ainda por cima por um oficial de baixa patente do exército, loiro, atlético e mais novo que ele?! É demais para o ego de uma pessoa como Dr. Euclides – na época, uma pessoa em tais condições só podia ser motivo de zombarias na rua. Claro que a resposta para tais problemas só poderia ser uma só: Euclides deveria lavar a honra com o sangue de Dilermando. E acabou dando no que deu.
Mas pior foi o que veio depois: Dilermando, pouco tempo depois, conseguiu se casar com Dona Saninha, tendo outros filhos com ela. Foi a julgamento pela morte do Dr. Euclides, mas conseguiu ser absolvido por ter conseguido provar que o matou em legítima defesa. Que fora o escritor quem o atacara primeiro. E isso que, nos primeiros depoimentos, o oficial do exército se contradisse, e praticamente assumiu a culpa. Por conta dos inúmeros ataques da imprensa e da sociedade, que estava, evidentemente, a favor do Dr. Euclides – afinal, era um escritor famoso – Dilermando teve de carregar, pelo resto da vida, a pecha de grande culpado pela Tragédia da Piedade, de sedutor, de assassino, tudo por conta de sua “molecagem” de ter se apaixonado por uma mulher casada.
E não foi uma única vez, não: em 1916, Dilermando fora vítima de um novo atentado a bala, desta vez levado a cabo por Euclides Júnior, o Quidinho. Dilermando estava em um cartório do Rio de Janeiro, quando foi alvejado por Quidinho, então um estudante da Escola Naval, e que sofria grande pressão de seus colegas para que vingasse a morte do pai. Mas se deu mal: Dilermando conseguiu revidar, e acabou matando o enteado a tiros. Foi novamente a julgamento, inocentado por ter conseguido provar que a morte de Quidinho foi em legítima defesa, mas a imprensa o atacou de novo.
Quidinho não foi o único dos filhos legítimos de Euclides a sofrer com o estigma familiar. O mais velho, Sólon, se tornara delegado de polícia e fora trabalhar no Acre, onde morreu de doenças tropicais. Pedro Afonso, o caçula, foi pivô de uma disputa judicial entre a família e o tutor designado para cuidar dele. E nenhum dos filhos de Euclides se dava bem com o padrasto, embora Dilermando tivesse acolhido a todos e os tratasse bem. No primeiro processo movido contra Dilermando, Sólon acabou se contradizendo diversas vezes em seu depoimento, devido à pressão da imprensa.
Dilermando bem que tentou compensar, com trabalho e esforço, os crimes cometidos. Conseguiu viver uma vida tranquila e harmoniosa com Dona Saninha e seus filhos, e conseguira chegar à patente de general. Porém, o casamento com Dona Saninha não durou muito: ele se apaixonou por outra mulher, e se separou em 1926. Só reviu Dona Saninha quando ela morreu de câncer, em 1932. Dilermando faleceu em 13 de novembro de 1951, pouco tempo depois de a revista O Cruzeiro ter dedicado a ele uma série de reportagens. No mesmo ano, era publicado o seu livro, A Tragédia da Piedade, sua versão dos fatos, sua “redenção”.
A Tragédia da Piedade afetou muito mais gente. Dona Saninha teve se aguentar, evidentemente, a humilhação pública de ter sido o pivô da morte do legítimo esposo. Mas o pior foi com o irmão de Dilermando, Dinorah. O então aspirante da marinha também era promessa do futebol, tendo atuado pelo time do Botafogo – e, mesmo com a bala alojada em sua coluna, conseguiu jogar um ano e ainda ajudar o time a ganhar o campeonato carioca de 1910. Porém, aos poucos, Dinorah, vítima de erros médicos, foi perdendo os movimentos das pernas, e passou a depender de cadeira de rodas e do auxílio do irmão. Sua carreira promissora como militar e esportista fora destruída. Acabou se tornando alcoólatra e mendigo em Porto Alegre, RS, onde se suicidou, jogando-se com sua cadeira de rodas no cais do porto.
E, assim, desenrolou-se uma tragédia que destruiu a vida de duas famílias, os Cunha e os Assis.

A HISTÓRIA TRATADA NO LIVRO
Em MATAR PARA NÃO MORRER, Mary Del Priore, como já dito, faz um exercício de micro-história: parte da Tragédia da Piedade para fazer um panorama completo da sociedade de seu tempo. Nos cinco capítulos do livro, fala a respeito, inicialmente, das concepções ideais de família da época: o marido como provedor, a mulher como dedicada ao lar e aos filhos, portanto, submissa ao marido, e criada desde pequena unicamente para isso; vergonha para a mulher do início do século XX era ser solteira. Quem traísse o marido poderia pagar com a vida; e, no julgamento, o homem que matasse a esposa “traidora” nem acabava preso: conseguiam fazer com que a culpa do crime recaísse sobre a mulher adúltera – mesmo que o casamento não lhe trouxesse felicidade, o que poderia justificar um adultério, a mulher não podia contrariar a “lei de Deus”.
A autora aproveita cada gancho oferecido pela história: também fala do funcionamento das instituições jurídicas e militares, para tentar traçar o passado de Dilermando e Dinorah, dois estudantes dedicados e precocemente órfãos; fala a respeito da imprensa da época, e de como ela abordava os fatos (não raro de forma sensacionalista), ao se referir aos ataques a Dilermando; e também fala a respeito da moda daquele momento, o futebol, que ajudava a formar homens que depois se tornariam modelos para a sociedade. Os esportistas, ou sportsmen, eram verdadeiros modelos de homens, íntegros à sociedade e retratos de saúde. Se encaixa para caracterizar Dinorah de Assis, uma carreira promissora brutalmente interrompida.
A falha da autora, no entanto, foi ter dado pouca atenção à carreira e à obra de Euclides da Cunha – passa por alto Os Sertões e suas outras obras. Mary Del Priore se detém apenas nos bastidores da Tragédia da Piedade, e na tragédia pessoal de Dilermando de Assis, incluindo o assassinato de Quidinho, tudo contado em detalhes. O pior é que o livro não traz nem um caderno iconográfico, com imagens da época. Nem uma ilustração. Só um projeto gráfico diferenciado.
E, hoje, é difícil saber quem é o verdadeiro vilão da história. De um lado, um escritor renomado, temperamental, marido pouco competente e que só pensava em trabalho. De outro, um oficial do exército, às vezes poeta, sedutor loiro e assassino, que cometera uma molecagem de adolescente e teve de pagar por essa molecagem pelo resto da vida. E, no meio, uma mulher a quem foi tirado, várias vezes, o direito de ser feliz; um rapaz que sofria bullying por ser filho de um homem que foi morto pelo padrasto; e uma jovem promessa do futebol que terminou seus dias aleijado, mendigando pelas ruas.
Ou melhor: essa história não teve heróis nem vilões, apenas vítimas. Tudo por causa do 15 de agosto de 1909. Tudo por causa de uma molecagem ocorrida a partir de uma visita em uma tarde de 1905. Tudo porque alguém havia ousado escolher sua forma de ser feliz naquela República Velha onde poucos tinham esse direito, ainda mais se eram do povo.
De todo modo, o livro ainda não é tão difícil de encontrar em livrarias e bibliotecas.

PARA ENCERRAR...
...como de praxe, toda vez que resenho algum livro de História aqui no blog (desde uma “molecagem” ocorrida em um dia de dezembro de 2015), coloco aqui mais algumas páginas de minha HQ folhetinesca, O Açougueiro, cujo fim ainda está longe, e indefinido. E ainda tive de refazer e reescanear algumas páginas ao longo do tempo...
Devido a alguns percalços, só consegui produzir duas páginas para esta ocasião. E já estamos próximos da 100ª página publicada. E ainda vai ter mais... E ainda não há definição se a “obra” vai ter versão impressa.
Mas veremos como vai ficar.
Aguardem novidades.

Até mais!

Nenhum comentário: