segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Livro: CÃES DA PROVÍNCIA

Olá.
Por esses dias que medeiam o final do ano, bateu um súbito e louco interesse por um assunto histórico um tanto mórbido. Até o presente momento, já resenhei dois livros a respeito dos crimes da Rua do Arvoredo, ou caso da Linguiça Humana, ocorrida em Porto Alegre, entre 1863 e 1864.
Pues, hoje, vou resenhar mais um livro ligado à temática. Desta vez, é um romance. De um dos maiores escritores do Rio Grande do Sul do século XX – ou pelo menos, onde sua reputação ficou.
Hoje, então, falarei de CÃES DA PROVÍNCIA, de Luiz Antonio Assis Brasil.

O REDATOR
Antes de falar do livro, propriamente dito, é justo, como sempre faço, que antes eu fale do autor – no caso, Luiz Antonio de Assis Brasil, às vezes grafado sem o “de”.
A capa acima é da edição de 1997 – a sétima – de CÃES DA PROVÍNCIA, sua principal obra, publicada pela editora Mercado Aberto. É dessa edição que extraio a síntese biobibliográfica inicial a respeito do autor, com algumas inserções de informações extraídas da internet:
“Gaúcho de Porto Alegre, 1945. Embora de família fortemente ligada à formação do Estado, passou a infância e a adolescência em Estrela, zona de colonização germânica. De volta a Porto Alegre, estudou com os padres jesuítas e seguiu Direito [na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS], formando-se em 1970. Durante os estudos e mesmo depois, atuou na Orquestra Sinfônica de Porto Alegre [OSPA] como violoncelista. A música, entretanto, foi substituída pela literatura, e a prática da advocacia pelo magistério superior. Doutor em Letras, (...) professor adjunto na PUC do Rio Grande do Sul onde, no Curso de Pós-graduação em Letras, coordena uma oficina de criação literária que já publicou várias antologias de contos [e revelou diversos escritores que ficariam célebres, como Letícia Wierzchowski, Cíntia Moscovich, Daniel Pellizzari, Monique Revillion e Daniel Galera].
Atuou na administração cultural, exercendo sucessivamente os cargos de diretor do Centro Municipal de Cultura de Porto Alegre e diretor do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul – em sua gestão deu início à publicação da série Autores Gaúchos, de repercussão nacional –, e foi, por último, subsecretário de Cultura de seu Estado. No inverno 84/85 foi bolsista do Goethe-Institut na República Federal da Alemanha. Por solicitação do Ministro Furtado fez parte, com Affonso Romano de Sant’Anna, da comissão especial que ofereceu sugestões para uma política federal do livro. Em 89/90 foi Catedrático Convidado de Literatura Brasileira na Universidade dos Açores, Portugal. Presidente da Associação gaúcha de Escritores no Biênio 88/90. Membro dos Conselhos Editoriais das editoras da PUC/RS e da Universidade de Caxias do Sul, bem como do Conselho Estadual de Cultura.
Obras publicadas: Um quarto de légua em quadro (1976) [...]; A prole do corvo (1978) [...]; Bacia das Almas (1981) [...]; Manhã transfigurada (1982) [...]; As virtudes da casa (1985) [...]; O homem amoroso (1986); Cães da Província (1987) [...]; Videiras de cristal (1990) [...]; [A trilogia Um Castelo no Pampa, composta por:] Perversas Famílias (1992) [...]; Pedra da Memória (1993) [...]; [e] Os senhores do século (1994) [...]; Anais da Província-Boi (1997); Concerto Campestre (1997). Em 1988 publica no jornal Diário do Sul o folhetim Breviário das Terras do Brasil [compilado em livro em 1997, que também foi o ano em que Luiz Antonio de Assis Brasil foi escolhido patrono da 43ª Feira do Livro de Porto Alegre].
Elogiado por A. Bosi, em sua História Concisa da literatura brasileira, foi incluído pelo brasilianista Malcolm Silverman na obra A Moderna sátira brasileira. Faz parte do livro A posse da terra, de Cremilda Medina (Ed. Casa da Moeda, Portugal), e é objeto de estudos e citações em obras de Antonio Hohfeldt, Regina Zilbermann, Flávio Loureiro Chaves, Volnyr Santos e outros. [...]
Prêmios recebidos, sem inscrição prévia: prêmio Ilha de Laytano (1977) por Um Quarto de Légua em Quadro; Prêmio Érico Veríssimo (1987), concedido pela Câmara de Vereadores de Porto Alegre pelo conjunto de sua obra, e o Prêmio Literário Nacional, do Instituto Nacional do Livro (1988), por Cães da Província.(in: Cães da Província, 7ª edição. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1997, p. 3-4. As inserções entre colchetes saíram do verbete sobre o autor na Wikipedia).
Para completar as informações a respeito de Luiz Antonio de Assis Brasil, depois de 1997: em 1998, ele é palestrante convidado na Brown University, em Providence, EUA; em 2000, ele participa do programa Distinguished Brazilian Writer in Residence, na Berkeley University, Califórnia, EUA. E, entre 2011 e 2014, atuou como Secretário da Cultura do Estado do Rio Grande do Sul, durante a gestão do governador Tarso Genro. Ele continua atuando como professor e, periodicamente, escreve para jornais, como Zero Hora.
Obras publicadas nos anos 2000: O Pintor de Retratos (2001); A margem imóvel do rio (2003); Música perdida (2006); Ensaios íntimos e imperfeitos (2008); e Figura na Sombra (2012).
Prêmios recebidos nos anos 2000: prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional (2001), por O Pintor de retratos; menção honrosa do Prêmio Jabuti (2003) e prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira (2004), por A margem imóvel do rio.
A obra do autor, atualmente, está sendo editada pela editora L&PM, nas versões normal e pocket (mais adiante, veja a capa da edição de CÃES DA PROVÍNCIA pela L&PM). E também ganhou edições no exterior, na Europa e América Latina. E sua obra também é constantemente analisada em teses acadêmicas – já saíram até livros de análise de livros específicos do autor.
Ah: a obra de Luiz Antonio de Assis Brasil também já ganhou adaptação para o cinema! Foram quatro filmes até o momento em que escrevo, adaptando livros do autor: o primeiro foi Videiras de cristal, adaptado em 2002, pelo diretor Fábio Barreto, sob o nome A Paixão de Jacobina; em 2004, Concerto Campestre foi adaptado para um filme homônimo, por Henrique de Freitas Lima; em 2005, Um quarto de légua em quadro é adaptado pelo diretor Paulo Nascimento, sob o nome Diário de um Novo Mundo; e, em 2008, Manhã Transfigurada ganha um filme homônimo, dirigido por Sérgio de Assis Brasil. Há notícias de que O Pintor de Retratos também está prestes a ser adaptado para o cinema.
Luiz Antonio de Assis Brasil é tido como um importante escritor gaúcho, e, como tal, seus livros são mais “cabeça”, como todo bom literato gaúcho, ou, pelo menos, levando em conta as atuais tendências da literatura comercial, cujos maiores sucessos são, basicamente, livros de ficção fantástica. Por isso, tanto a linguagem como os temas abordados são mais voltados a leitores mais “instruídos”, e seus livros atraem mais quem já ouvira falar de sua obra anteriormente. E o tema mais recorrente da obra do autor é o passado do Rio Grande do Sul, principalmente o século XIX. Um Quarto de Légua em Quadro, por exemplo, se passa na época da colonização açoriana do Rio Grande do Sul, no século XVIII; A Prole do Corvo recupera episódios da Guerra dos Farrapos (1835 – 1845); As Virtudes da Casa, segundo o estudioso Valdocir Esquinsani, que até mesmo publicou em livro a sua tese (As Metamorfoses de um Mito, Passo Fundo, Editora Universitária, 2000), recria, no Rio Grande do Sul do século XIX, o mito grego do herói trágico Agamenon, imortalizado em peça teatral de Ésquilo; Videiras de Cristal recupera o episódio da Revolta dos Muckers, uma seita religiosa formada por colonos alemães na região de São Leopoldo, RS; Concerto Campestre se passa no contexto da atividade agropecuária do século XIX (e, assim como O Homem Amoroso, carrega um acento autobiográfico, tendo como tema condutor a música); e CÃES DA PROVÍNCIA trata de acontecimentos da cidade de Porto Alegre no século XIX.
Saibam mais sobre o autor em seu site pessoal: www.laab.com.br.

O HOMENAGEADO
Bão. CÃES DA PROVÍNCIA lança mão de dois episódios principais ocorridos na década de 1860: os crimes da Rua do Arvoredo, quando o ex-policial e açougueiro José Ramos se torna suspeito de fabricar linguiças com carne humana; e o julgamento do pedido de interdição dos bens do escritor José Joaquim de Campos Leão, também conhecido como Qorpo-Santo. Ambos personagens reais.
Antes de prosseguir, devo falar um pouco a respeito de Qorpo-Santo, o objeto do romance citado. Escritor de peças de teatro, e considerado por vários críticos teatrais o precursor do teatro do absurdo no Brasil, José Joaquim de Campos Leão nasceu em Triunfo, RS, em 1829, e faleceu em Porto Alegre, em 1883, vitimado por uma tuberculose. Ele não foi reconhecido em vida – suas ousadas peças teatrais só foram redescobertas e montadas nos anos 1960.
Na juventude, teve o pai assassinado durante a Guerra dos Farrapos, em 1839; mudou-se para Porto Alegre para estudar gramática. Inicialmente, trabalha no comércio, e, a partir de 1850, habilita-se para o Magistério Público, fazendo carreira também como professor. Qorpo-Santo funda um grupo dramático em 1851, escreve para jornais da Província do Rio Grande do Sul a partir de 1852, e, em 1855, deixa o magistério e leciona em vários colégios. Em vida, Qorpo-Santo teve várias profissões, tanto em Porto Alegre como em Alegrete, para onde muda-se em 1857 com a família (no ano anterior, ele casou-se com Inácia de Campos Leão). Em Alegrete, Qorpo-Santo atua como delegado de polícia e vereador.
Em 1861, a família volta para Porto Alegre. No ano seguinte, Qorpo-Santo, já adotando o pseudônimo célebre (a grafia deve-se a uma proposta pessoal de reforma ortográfica – muitos leem “Corpo-Santo”, mas eu, pessoalmente, imagino que se leia, aproveitando o fonema da letra Q, “Kuorpo-Santo”), começa a escrever suas peças teatrais. Em 1862, ainda, se faz notar sinais dos transtornos mentais que levam Dona Inácia a pedir a interdição dos bens do marido. Qorpo-Santo é diagnosticado com monomania, com “superexcitação da atividade cerebral”, por sua compulsão de “tudo escrever” – apenas em maio de 1866, ele escrevera oito peças teatrais, das dezessete que escreveu ao todo! Porém, os psiquiatras da Porto Alegre daquele tempo não chegam a um acordo sobre o estado mental do paciente, que alterna momentos de lucidez com alucinações. Ainda assim, é decidida pela interdição dos bens. E Qorpo-Santo é enviado para novos exames psiquiátricos no Rio de Janeiro, que atestam que ele goza de boa saúde mental.
Mesmo assim, em 1868, sob novo julgamento, a interdição é mantida, e seus bens são administrados por terceiros – Dona Inácia também é impedida de administrar esses bens. Mesmo com o parecer favorável, o estigma está criado, e Qorpo-Santo se vê cada vez mais isolado, sendo obrigado a deixar a atividade jornalística. Ainda assim, em 1877, Qorpo-Santo monta uma gráfica, e por conta própria edita sua obra, reunida nos nove volumes da coletânea conhecida como Ensiqlopedia, ou seis mezes de huma enfermidade. É na Ensiqlopedia que, além de crônicas, poemas, confissões, receitas culinárias e outros textos, Qorpo-Santo edita suas ousadas peças teatrais. A partir dos anos 1960, inicia-se o resgate das obras de Qorpo-Santo – até hoje, só foram encontrados seis dos nove volumes da Ensiqlopedia. De vez em quando, é possível encontrar compilações de suas peças teatrais nas livrarias e bibliotecas.
Qorpo-Santo é tido como precursor do teatro do absurdo, com temas que iam contra as tendências do teatro da época, guiado pelos ideais do Romantismo. Dentre as dezessete peças de Qorpo-Santo, incluem-se: As Relações Naturais; Matheus e Matheusa; Hoje sou Um, Amanhã Sou Outro; Eu Sou Vida, Eu Não Sou Morte; Lanterna de Fogo; A Separação dos Dois Esposos. Nessas peças, Qorpo-Santo lança mão de ousadias para sua época, como colocar prostitutas como personagens; tratar do homossexualismo de forma natural; se incluir como personagem; e até mesmo indicar ousadias cênicas difíceis de reproduzir com as limitações cênicas do século XIX, como personagens que simulam perder partes do corpo ou o fim da peça com jorros e explosões de luz. Mas, o mais importante é que os personagens de Qorpo-Santo são projeções dele mesmo, principalmente em seu inconformismo com as regras sociais de seu tempo – inconformismo que se tornou mais forte depois que foi submetido aos exames, internações e à interjeição de seus bens. Há de lembrar que os tratamentos psiquiátricos do século XIX, pelos padrões de hoje, lançavam mão de técnicas cruéis e questionáveis, como isolamento em hospícios, aprisionamento com correntes e camisas-de-força, tratamentos com choques elétricos e até lobotomia.
(Fonte: sites Wikipedia e Enciclopédia Itaú Cultural [enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8151/qorpo-santo])

QORPO-SANTO NO ROMANCE
É como um sujeito inconformado com as regras sociais que Qorpo-Santo é retratado em CÃES DA PROVÍNCIA. No livro, lançado em 1987 e vencedor do Prêmio Literário Nacional do INL em 1988, Luiz Antonio de Assis Brasil reconstitui os aspectos da cidade de Porto Alegre no século XIX, tanto na parte física – a descrição da cidade – como social. A sociedade porto-alegrense do século XIX se encontrava muito presa às convenções sociais, às regras de conduta impostas pela Igreja, pela Política e pelos costumes, tanto as classes ricas como as pobres. Se portam como cães fiéis e obedientes a essas convenções (daí o nome do romance). Por seu provincianismo, qualquer fato que acabe saindo do comum agita e revolta a população da Capital da Província, mobiliza as autoridades, provoca interdições e depredações.
Por isso, as notícias da prisão de José Ramos, o linguiceiro, e da interdição dos bens de Qorpo-Santo agitam a população da capital. Além de não conseguirem aceitar o fato de terem, involuntariamente, consumido carne humana, não conseguem suportar o fato de um louco dizer o que pensa de todos esses acontecimentos, e expor a sociedade de uma forma que não consegue suportar. Ou, pelo menos, de alguém que acreditam ser louco: Qorpo-Santo é retratado como um homem de superioridade intelectual, o mais inteligente daquela cidade, mas que, como a grande maioria dos gênios, não foi reconhecido por seus contemporâneos. Loucos seriam, na verdade, os que queriam interditar o pobre gênio. Mas, mais que isso, tais processos acabam escancarando histórias de crimes, adultérios, incestos e outras crueldades, às quais Qorpo-Santo denuncia, a plenos pulmões a quem assiste seu julgamento, ou através de suas peças, que ele começa a escrever.
Para escrever CÃES DA PROVÍNCIA, Luiz Antonio de Assis Brasil também contou com a consultoria do historiador Décio Freitas, que conseguira o material referente ao processo contra José Ramos e a mulher, Catarina Palse. Foi só em 1996 que Freitas publicaria seu livro O Maior Crime da Terrae só em 2004 que o escritor David Coimbra consultaria Freitas para escrever Canibais. Então, Assis Brasil chegou antes.
Bão. O romance conta, de forma não-linear, e intercalando personagens e situações, os acontecimentos ocorridos na Porto Alegre da década de 1860. Quanto à parte de Qorpo-Santo, os acontecimentos concentram-se desde o início do processo de interdição até a sua partida para o Rio de Janeiro.
Pelo menos um personagem ficcional tem grande importância na narrativa: o comerciante Eusébio Cavalcante, amigo de Qorpo-Santo, de início muito preocupado com as convenções sociais e seus negócios, até receber a notícia de que sua esposa, a geniosa Lucrécia, fugira com o amante. A ausência da esposa causa uma grande angústia a Eusébio – angústia que só aumenta quando, instado por Qorpo-Santo e levado a um necrotério, ele acaba reconhecendo um corpo esquartejado de mulher como sendo o de Lucrécia. Corpo esse que fora encontrado entre os restos das vítimas de José Ramos, na casa da Rua do Arvoredo. Nos dias que seguem, Eusébio se entrega ao luto, que até dá uma melhorada depois que faz uma viagem e se envolve com uma alemã, um caso rápido e fugaz; mas tem cada vez mais certeza de que Lucrécia está viva, vivendo com o amante, e reconhecera o corpo, e lhe dera enterro em nome da mulher, como uma forma de desviar a atenção da população.
Até que Lucrécia, de repente, volta para casa, arrependida do adultério, infeliz com a vida que levava com a família do amante... porém, não pode se mostrar ao público, e, trancada em casa, sucumbe aos poucos ante à loucura de Eusébio, e sua própria. O retorno da esposa só deixa o comerciante mais angustiado, e a libertação só se dá depois que consegue, afinal, se livrar da esposa, dando-lhes uma morte piedosa.
Não sei dizer se os personagens do Dr. Joaquim Pedro e do Dr. Landell são baseados em figuras reais. Esses são os médicos encarregados de discutir o caso do paciente Qorpo-Santo, para depois oferecerem o parecer ao juiz, determinando se ele deve ter os bens interditados ou não; e aproveitam qualquer ocasião para discutir o caso, desde uma caçada nos campos até uma aula de anatomia na Santa Casa de Porto Alegre – o principal hospital daquele tempo. Enquanto o Dr. Landell é favorável ao diagnóstico de que Qorpo-Santo é louco, o Dr. Joaquim Pedro é favorável ao diagnóstico de que Qorpo-Santo é são – e se convence disso depois de ler as peças escritas pelo paciente (há, inclusive, pequenas e breves descrições das peças de Qorpo-Santo ao longo do livro).
O delegado de polícia Dario Calado, sim, é real. Acompanhamos alguns de seus pensamentos diante dos casos que se apresentam diante de si. E também de seus interesses amorosos: ele chega a desejar a criminosa Catarina Palse – que tem uma participação muito breve no romance, assim como a de José Ramos – e, depois, deseja até mesmo Inácia, a esposa de Qorpo-Santo. Por pouco, em um segundo encontro, Calado não consuma seu desejo pela mulher do louco.
Inácia de Campos Leão vive, ao longo do romance, um sentimento conflitante em relação ao marido. Ambos se amam, mas Inácia não consegue suportar o fato de Qorpo-Santo estar entregue à sua atividade insana de escrever, e deixar a família de lado, vivendo na rua da amargura. Por isso, opta pela interdição dos bens, com a certeza de que poderá administrá-los. Como prova de sentimentos conflitantes, ela chega até a dormir com o marido, e, pouco depois, brigar com ele, que foge, nu, pelas ruas, e depois é preso.
Apesar da lucidez de Qorpo-Santo em denunciar as mazelas da sociedade em que vive, o personagem também alterna momentos de pura alucinação e ações ilógicas: cria um sagui em seu quarto, muda o nome de seu criado e confidente, Juvêncio, para Inesperto, tranca a porta da frente de seu sobrado com tábuas – o acesso para sua casa, agora, se dá através de uma escada portátil, pela janela de seu quarto – e recebe “visitas” do imperador francês Napoleão III (sobrinho de Napoleão Bonaparte), que exige que Qorpo-Santo reescreva seu destino, para que não termine como o tio. Em alguns momentos, Qorpo-Santo chega a apresentar o Imperador, que só ele vê, a pessoas em seu redor. Nos diálogos com o Imperador imaginário, Qorpo-Santo (ou melhor, Assis Brasil) aproveita para discutir reformas sociais lúcidas, e válidas para qualquer tempo. De vez em quando, a imaginação de Qorpo-Santo confunde Porto Alegre com Paris. Aí, se pode questionar: sim, Qorpo-Santo está louco. Essas não são atitudes de gente que denuncia mazelas de forma tão lúcida. Ou seriam uma forma racional de protesto? Os leitores podem decidir.
Inesperto também se mostra um personagem importante no livro, o ponto de equilíbrio de Qorpo-Santo entre a lucidez e suas alucinações, apesar de também agir como um “cão da província” – apenas cumpre ordens, sem maiores questionamentos, por mais insanas que sejam, e não tem, exatamente, uma opinião formada a respeito do que presencia. Inesperto é o contato entre seu patrão e a realidade, uma espécie de Sancho Pança para um Dom Quixote porto-alegrense.
Enfim. CÃES DA PROVÍNCIA pode ser encontrado nas livrarias e bibliotecas. É um romance “cabeça”, que pode exigir um pouco do leitor, mas livros, em tese, servem justamente para isso: colocar cultura na cabeça dos leitores. Acrescentar palavras novas ao vocabulário, acrescentar experiências novas à vida. E procurar entender não apenas por que Luiz Antonio de Assis Brasil é um de nossos escritores mais importantes; e porque CÃES DA PROVÍNCIA é um livro premiado.
Quem sabe, também, não se colocar no lugar do atormentado Qorpo-Santo.
Férias são uma boa oportunidade para colocar cultura na cabeça: inclua livros na sua mala! O Estúdio Rafelipe já deu sua sugestão.

PARA ENCERRAR...
Coloco aqui novas páginas de minha nova HQ folhetinesca, batizada, provisoriamente, como “O Açougueiro”. Ela é baseada, como puderam deduzir até agora, nos Crimes da Rua do Arvoredo. Mas sob um novo enfoque, que vai aparecendo à medida em que vou produzindo – e o leitor vai lendo. É tudo o que garanto por hora.
Novas páginas da série, agora, só no ano que vem. Mas ainda tem postagem este ano, antes da virada. Aguardem e verão!

Até mais!

Nenhum comentário: