segunda-feira, 30 de abril de 2018

Livro: O SARGENTO, O MARECHAL E O FAQUIR


Olá.
Hoje, antes do findar do mês de abril, trago a vocês outro livro, versando sobre história, sobre micro-história. Uma história ampla a partir de um fato pequeno.
Hoje, é mais um livro do escritor gaúcho Rafael Guimaraens, atual especialista na história de sua cidade natal, Porto Alegre, RS, e do qual falei aqui várias vezes. Mas, em seu livro mais recente, ele resolveu avançar um pouco no tempo. O fato retratado em questão, que também tem Porto Alegre como palco, é mais recente, e lida com um tema delicado: o período do Regime Militar Brasileiro (1964 – 1985), do qual uns tem saudade, outros nem querem lembrar – e iniciado em um mês de abril. De certa forma, faz um link com fatos recentes.
Eis aqui O SARGENTO, O MARECHAL E O FAQUIR.

O SARGENTO, O MARECHAL E O FAQUIR foi publicado em 2016, pela editora Libretos, pela qual quase toda a obra do autor foi lançada. Suas 271 páginas, divididas em quatro partes e vários subcapítulos, procuram reconstituir, em um estilo rápido e ágil, similar ao que o autor usou em Tragédia da Rua da Praia, a biografia e os últimos passos da primeira vítima fatal da repressão desencadeada pelo Golpe Militar de 1964. O martírio do sargento do Exército Manoel Raymundo Soares (1936 – 1966) ocorreu em Porto Alegre.
Em estilo de romance policial, com a narrativa não-linear fragmentada e entrecortada, e com um caderno iconográfico com muitas fotos no meio do livro, acompanhamos as trajetórias dos três personagens referidos no título: o sargento, o referido Manoel Raymundo Soares; o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, o primeiro presidente do Regime Militar iniciado com a deposição do então presidente João Goulart; e o faquir e cenógrafo Edu Rodrigues. Desses três personagens, a trajetória de apenas dois se cruzam pessoalmente, e brevemente.
A começar pelo sargento. Manoel Raymundo Soares nasceu em 15 de março de 1936, em Belém do Pará. De origem muito pobre, o jovem Manoel soube aproveitar as oportunidades que a vida lhe ofereceu para mudar de vida. Estudioso, autodidata e leitor compulsivo, conseguiu, com muito esforço e determinação, se diplomar como torneiro-mecânico no Instituto Lauro Sodré, de Belém. Aos 18 anos, Manoel parte para o Rio de Janeiro, onde seguiu carreira militar, chegando ao posto de sargento. Duas características definiram seu caráter: o gosto pela cultura erudita – era apreciador de música clássica, leitor compulsivo e frequentador de teatros –, que ele procurou dividir com as pessoas de sua convivência; e o desejo de lutar contra toda forma de injustiça. Manoel sempre foi um exemplo de conduta e de coragem, tanto para seus colegas de farda quanto de luta armada. Um de seus maiores amigos foi Araken Vaz Galvão, parceiro em diversas atividades. Ainda no Exército, ele conheceu a futura esposa, a operária Elizabeth Chalupp Simão, a Betinha. Inicialmente os dois, devido às regras do Exército, só se viam à distância, depois passaram a morar juntos, só mais tarde oficializando a união. Ambos seriam fieis um ao outro, pelo restante de suas vidas.
A luta contra as injustiças, principalmente as que ele observou no próprio exército, e insuflada por suas leituras, levou o sargento Raymundo – Manelito para a esposa – a tomar parte em algumas rebeliões contra seus superiores. Uma delas, baseada em uma homenagem a um general semiaposentado nomeado líder da rebelião, ocasionou sua primeira prisão, em 1963, e uma transferência forçada para o Mato Grosso, servindo uma guarnição distante. Pouco depois, ele e a esposa retornaram ao Rio de Janeiro. Em 1964, Manoel acabou expulso do Exército, após nova tentativa de rebelião, passando a sobreviver de outras profissões, enquanto convivia, o quanto possível, com Betinha. Apesar da exoneração, ainda mantinha contatos com seus colegas de exército, planejando novas ações. Em 1966, uma nova tentativa de rebelião o trouxe até Porto Alegre.
Já o Marechal, Humberto Castelo Branco, chegou à presidência da nação por vias acidentadas. Ele assumiu o governo em 15 de abril de 1964, eleito indiretamente pelo Congresso, depois de um período em que, desde o dia 1º de abril, o governo foi exercido por uma junta militar formada após a deposição do presidente João Goulart. O governo de Castelo Branco foi caracterizado pelo gradual endurecimento do Regime, no que ele mesmo acreditava que fosse uma série de ajustes antes da devolução do poder aos civis. Castelo Branco foi um dos que acreditavam que o Golpe foi necessário para salvar o país de uma ameaça considerada ainda pior – a transformação do Brasil em uma República Comunista, tal como aconteceu a Cuba, o que, segundo diziam os apoiadores da “Revolução de 64”, João Goulart pretendia. Durante o governo de Castelo Branco, se discutia muito a respeito dos futuros rumos da “Revolução”, se o destino era o abrandamento ou o endurecimento; no fim, Castelo Branco viu seus planos irem por água abaixo, com a vitória da ala “linha-dura”, onde se incluía seu sucessor, Artur da Costa e Silva, que assumiria em 1967. A “linha-dura” foi responsável pelo endurecimento do Regime Militar, cujo ápice foi o AI-5, em 1968 – embora no governo de Castelo Branco tenha se observado a assinatura das primeiras medidas limitadoras das liberdades civis.
Castelo Branco teve de assistir e intervir, no que foi possível, no caso que ficou conhecido como “Caso das Mãos Amarradas”.
Edu Rodrigues, o faquir natural de Porto Alegre, acabou se tornando o vilão da história, embora não quisesse. Antes de tentar a carreira como faquir, então um talento circense em moda no Brasil, Edu Rodrigues sobrevivia de bicos e pequenas contravenções. Então, sob o pseudônimo de Príncipe Aladim, e copiando truques de outros faquires que fizeram sucesso na Capital gaúcha, Edu Rodrigues tentou fazer carreira com demonstrações de resistência física, exibindo-se em camas de pregos, se fazendo trancar por dias em caixas de vidro... mas, em todas as vezes, acabou fracassando, devido à falta de preparo físico e psicológico necessárias para suportar as dores da profissão, entre elas a privação de alimentos ou líquidos. Certa vez, tentou crucificar-se, tal como Jesus cristo, mas não aguentou o tempo que disse que aguentaria; em outra, tentou um golpe para escapar de uma demonstração. Falido e malquisto pelo público, Edu Rodrigues encontrou alguma estabilidade como cenógrafo, pintor de cenários no Theatro São Pedro, também fazendo bicos em atividades político-partidárias.
Foi o destino que fez os caminhos de Manoel Soares e Edu Rodrigues se cruzarem, em março de 1966. Manoel, escondido em um pequeno apartamento em Porto Alegre, junto com amigos, planejou sua última ação política: distribuir panfletos contra a presença de Castelo Branco, que visitaria a cidade naqueles dias. Acabou conhecendo Edu Rodrigues por acaso, que se dispôs a ajudar na panfletagem. Manoel Rodrigues passou alguns dias fechado no apartamento emprestado, preparando os panfletos impressos com tipos feitos com pão dormido. Mas, no momento em que ia iniciar a atividade, no dia 11 de março, Manoel acabou sendo preso, enquanto aguardava Edu Rodrigues no Parque Farroupilha. Edu Rodrigues o denunciara às autoridades.
Manoel Rodrigues foi levado ao quartel da 6ª Companhia de Guardas da Polícia do Exército, filial porto-alegrense do Departamento de Ordem Política e Social, o temido DOPS, onde acabou sendo torturado. A seguir, em maio de 1966, foi levado à Ilha do Presídio, atualmente Ilha das Pedras Brancas. O presídio lá existente hoje está em ruínas. Bem: Manoel permaneceu ali por algum tempo. De lá, tentou remeter, com ajuda de amigos, algumas cartas à sua mulher, que aguardava no Rio de Janeiro. Mas acabou desaparecendo.
Foi no dia 24 de agosto que o corpo de Manoel Soares foi encontrado por um popular, na Ilha das Flores, às margens do Rio Jacuí. O corpo foi encontrado, com sinais de espancamento, álcool no sangue e as mãos amarradas às costas – a autópsia indicou que a causa da morte foi afogamento. É aqui que começa a segunda parte do relato: a árdua busca pela verdade sobre a morte do sargento.
Betinha compareceu em Porto Alegre para reconhecer o corpo e participar do enterro do marido, que foi concorrido. O caso, amplamente coberto pela imprensa da época, acabou nas mãos do promotor Paulo Cláudio Tovo, que viu o caso sofrer restrições por parte das autoridades. Outro personagem que procurou dar seu apoio a Betinha foi o jornalista e radialista Dilamar Machado. A partir desse ponto, inicia um verdadeiro jogo, tanto para apurar a verdade dos fatos como para atrapalhar a apuração. Várias pessoas acabaram responsabilizadas, mas ninguém foi punido. Houve muitos depoimentos contraditórios, muitas apurações de fatos, desvios de opinião, restrições. As autoridades tentaram convencer a opinião pública que Manoel Soares foi morto por comunistas. O DOPS tentou até sondar Betinha, enquanto ele próprio era questionado sobre a existência, nunca comprovada, de um “DOPS dentro do DOPS”, um “Dopinho”. Edu Rodrigues procura proteção junto às autoridades, tão logo foi apontada sua participação no caso, mas não conseguiu.
A investigação posterior acaba concluindo que Manoel Soares havia sido morto durante uma sessão de tortura por parte dos encarregados pelo DOPS. Não se sabe ao certo as circunstâncias de sua morte, apenas especulações – Rafael Guimaraens inclui um capítulo onde imagina como devem ter sido as últimas horas do sargento. Não se sabe se Manoel foi jogado no rio Jacuí ou se ele se jogou; se injetaram álcool nele ou se o embriagaram, a fim de tentar arrancar uma confissão. Não se tem certeza se Manoel Soares foi solto da Ilha do Presídio, ou se o “caldo” que ele teria recebido foi na sede do DOPS.
Mas, no final das contas, como na maioria das histórias passadas durante a Ditadura Militar Brasileira, o Caso das Mãos Amarradas não teve final feliz para seus envolvidos. E não deve ter sido fácil para Guimaraens reconstituir o caso. Mas ele conseguiu fazê-lo, na medida para que o leitor também se indigne.
Hoje, existe um monumento em Porto Alegre para lembrar do caso, uma escultura alusiva ao “Caso das Mãos Amarradas”, um pequeno símbolo da necessidade da busca pela verdade de qualquer fato, tão difícil como hoje está sendo.

Para encerrar, nós agora iremos retroceder no tempo: voltaremos para a Porto Alegre de um século XIX “alternativo”, através de mais duas páginas de minha HQ folhetinesca, “O Açougueiro”. Hoje, só consegui produzir duas páginas, apesar do tempo que dispus – sei, havia dito na postagem anterior que seriam mais páginas. É que ainda não superei a situação difícil pela qual estou passando, por isso está difícil manter a concentração em qualquer coisa...

Na próxima postagem, tentaremos ser mais otimistas. Na próxima postagem onde falarei de novo livro de Rafael Guimaraens, eu tentarei ser mais otimista. Aguardem.
Até mais!

Um comentário:

Lucas Cristovam disse...

MINHA NOSSA! Eu tô muito tenso com O Açougueiro!!