segunda-feira, 26 de março de 2018

MACÁRIO - Capítulo 31: "Conversas em Dia"

Olá.
Hoje, segunda-feira, 15 dias depois; é dia, mesmo que na Semana Santa, de episódio inédito de meu folhetim ilustrado para adultos, MACÁRIO.
Desta vez, procurei aproveitar o tempo disponível e evitar de elaborar o episódio em cima da hora. Nos outros dias, tentarei aproveitar melhor os 15 dias entre cada capítulo.
AVISO: Leitura não recomendada para menores de 18 anos. Contém cenas de insinuação, de consumo de bebidas alcoólicas e de adulteração de substâncias originais.



Apesar de eu ter conseguido chegar a tempo para a minha aula, eu mal conseguia prestar atenção nela. A ansiedade ainda não havia passado.
Mas eu estava me sentindo melhor, ainda que só um pouco, depois da certeza de não haver perdido mais nada do que eu havia planejado.
Que loucura.
Visitado por duas mulheres. Depois, por um vampiro. Depois, raptado por uma gangue de monstros anarquistas. Depois, seduzido por mais três mulheres. Depois, fugi. Depois, embarquei, obrigado, numa limusine mágica. Nessa limusine, recebi conselhos “amorosos” de um Duende Rei. E escapei de todos esses episódios ileso. Ninguém quis vingança pelos corações que parti... ainda.
Mas deve ter gente que queria explicações pelo que fiz. Estava pensando nas garotas da gangue dos Animais de Rua, incluindo Morgiana. Pensei em Fifi, Morgiana e Aura. Elas queriam sexo, e eu fugi. E pensei também em Eliane, no ridículo que a fiz passar. Até em Gil eu pensei, mas por que estava pensando também na única garota que nada quis comigo, pois comprometida estava? E com um rapaz javali?!
Mas em outra oportunidade eu daria as devidas explicações. Certamente, iríamos nos ver de novo, indubitavelmente.
Olho em redor da sala de aula. Quase todos os meus colegas estavam... exceto Créssida.
Agora fiquei preocupado. Andrômeda havia me garantido que Créssida estava bem, que já havia saído do hospital e voltado para casa. E que não havia sido mordida pelos vampiros. Ela só recebera um dardo tranquilizante, já haviam sugado sangue dela anteriormente. Mas e se ela...?
Bem antes de eu formular o pensamento ruim, Créssida entrou na sala.
Estava tão linda, com o cabelo escorrido, os óculos, a camisa curta evidenciando o umbigo.
Fiquei aliviado, mas não muito. Créssida entrou parecendo meio grogue. Como se tivesse levado uma pancada na cabeça, como se tivesse tomado remédios fortes, ou como se tivesse sido zumbificada. Não era a maneira habitual de quem trabalhou o dia todo, e à noite tinha de estudar, já sentindo os efeitos do cansaço.
Não olhou para ninguém. Nem para mim. Apenas passou por mim e sentou em seu lugar, como se na sala só estivesse ela e o professor.
Nem um “oi” consegui balbuciar.
Agora fiquei preocupado. Será que Créssida não conseguiu se recuperar do trauma sofrido naquela noite? Ela estava prestes a me denunciar como sendo o “maníaco mordedor”, e Luce teve de aplicar dardos tranquilizantes nela. Nela e em Maura, que estava junto. Os tranquilizantes que a jogaram no chão haveriam lhe afetado? Ou a hipnose que Andrômeda alegava ter aplicado nela, para fazer esquecer aqueles acontecimentos, teve um efeito colateral inesperado? E se tiver acontecido a mesmo coisa com Maura, e se ela, nesse momento, estava atendendo os pacientes do hospital feito uma zumbi?
Por tudo isso, eu não estava conseguindo me concentrar na aula.
Mas Macário, o que está havendo com você?! Por que você andava desse jeito?! Por que você se preocupa demais com garotas com as quais você só quis (em princípio) sexo?! Por que você não consegue proteger as suas garotas?!

Saída da aula.
Fui me afastando do prédio do curso, meio cabisbaixo. Agora, eu tinha de ir para o bar, não tinha jeito.
O que eu queria era tentar falar com Créssida e saber se estava tudo bem, mas, em vez disso, eu tinha de ir para o bar. Os monstros disseram que iriam para lá, hoje. Na noite anterior, só veio o Luce, e tinha sido ele quem tinha me levado. Parece que tudo está voltando ao normal, ao nível que eu conseguia levar a vida... ou não? Maldita hora em que resolvi aceitar aquele pacto. Fiz um “pacto com o demônio” e, agora, anda tudo errado, anormalmente errado...
- Macário?!
Alguém me chama, atrás de mim. Créssida! E ela já parecia estar recuperada do transe. Me alcançou, respirando forte, a pasta de livros mal segura em seus braços.
- Oh, Créssida! – não pude conter um sorriso.
- Oi, Macário! Você veio à aula hoje, que bom! – ela também não pode conter o sorriso. – Acredita que só reparei agora, na saída da aula?! Que eu vi você se afastando do prédio?
- Andei faltando, não foi? Ontem eu não vim...
- Pois é. Mas ontem eu também não vim. Acordei no hospital, sabe? Na terça-feira à tarde. Fui liberada ao fim da tarde. Hoje eu tirei licença do serviço e fiquei no meu alojamento, meio de bobeira, colocando a cabeça no lugar. Acho que dormi muito. Viu que eu cheguei meio grogue na sala de aula, acho que na verdade eu hibernei... Quase me atrasei...
A metralhadora de palavras indicava que ela estava bem.
- É mesmo? – foi o que consegui soltar.
- Bem... é uma longa história. Eu mesmo não consigo entender o que aconteceu... Tudo o que me lembro é que eu... E você... – Ela hesitou um pouco no que ia falar, e depois, foi de uma vez só, olhando para mim: – Macário, vem cá: por que você fugiu do hospital?
- Hein? – assustei-me.
- Lembra, segunda-feira, digo, anteontem? Disso eu lembro bem, ainda. Sei que hoje é quarta, então, foi na segunda-feira... Que você estava com uma crise de vômito, intoxicação alimentar, algo assim? Que você vomitou água em cima de mim? Você também deve lembrar. Minha cabeça ainda está meio confusa, mas eu lembro que você... Você foi para o hospital ou não? Seguiu mesmo o meu conselho? Hein?
- Eu segui, Créssida. – falei. – Eu fui. Claro que fui. Mas não pude entrar.
- Como assim, não pode entrar?
- Bem, eu... – eu já hesitava entre contar a verdade ou inventar uma historinha, mas fui interrompido:
- Por causa daquelas caretas horrorosas, não é mesmo? Você também se assustou com elas, né?! Se assustou com sua própria carranca, né? Né?! – uma voz atrás de mim entra na conversa.
Olhamos para trás: Maura.
Também estava tão linda naquele conjunto de jeans todo azul. Camiseta azul, casaco, saia curta, tênis, tudo azul. O cabelo ondulado e brilhante sob a luz dos postes. Porém, estava carrancuda.
- Oi, Maura! – sem querer, abri um sorriso, feliz em ver que ela estava bem.
No entanto, Maura não sorria.
- Feliz em me ver, hein? – falou Maura, com uma voz de repreensão. – Está feliz mesmo em me ver? Hein, senhor... Macário Monstro?
- Mac... Mons...? – fiquei desconcertado. Senti o meu sorriso se desfazendo.
- Maura. – manifestou-se Créssida, arqueando a sobrancelha, um indicativo de que deduzira alguma coisa. – Ele fez aquela cara monstruosa para você também? Puxa, ele devia estar doente mesmo.
- Decerto, sim, doente, mas não tanto assim... – responde Maura, sem desfazer a carranca. – Estava tentando comer salgadinho e estava fazendo sujeira. E aí... ele me mostrou a carranca, e, enquanto eu fugia, viu a própria careta no espelho e fugiu. Pra onde você fugiu, hein, Macário Monstro? – ela me fez olhar em seus olhos. – Esse vai ser o seu apelido agora, sabe? Em vez de Macário Mulherengo, agora você vai ser o Macário Monstro. Ri, ri, ri...
E aí, ela deu risada. Que bom, seu bom humor voltara. Ou será que não? Ela ria, mas seu cenho continuava franzido. E a risada saiu forçada.
- Ei, Maura, não fale assim. Não foi tanto assim... – falou Créssida. – Tudo bem que o Macário aqui faz uma cara feia quando sente dor, mas não foi tanto assim...
- Claro que foi. – Maura desfez o sorriso. – Ele não estava tão doente assim, para poder se dar ao luxo de fugir do hospital antes do tratamento... Além de fazer caretas horrorosas, ainda fica tentando morder pescoços de meninas inocentes.
Engoli em seco. Oh, não, ela...
- Bem, tudo bem que foi só um pesadelo que tive naquele leito de hospital, mas... Oh, mas que ironia, eu, uma enfermeira, acordando em um hospital, em um leito de hospital. Ainda bem que foi de um hospital diferente do que eu trabalho... Mas, enfim. Sabe, Macário Monstro, eu tive um sonho pesado com você, viu? Sonhei que você tentava morder meu pescoço! Sonhei que te achei na rua, esfarrapado como um mendigo, e você tentou me morder... mas aí a Créssida me salvou. Pareceu tão real...
Outro engulho.
- Sabe, pior que eu tive um sonho parecido! – falou Créssida. – Sabe, Macário, sonhei que você que era o maníaco mordedor!
- Ma... maníaco mordedor, eu?!
Oh, não, será que elas estão, na verdade, se lembrando daquela noite?!
- Mas... bem, ainda bem que era sonho. Pensando bem, você não seria capaz de morder pescoços. Seria? Não, claro que não. Afinal... bem, você também foi mordido, e...
Respirei aliviado. Elas tinham lembranças daquela noite, mas encaravam como sendo apenas um sonho ruim! Menos mal. Pelo jeito, a hipnose de Andrômeda fez o efeito desejado. Se é que foi realmente assim.
- Só o que não consigo explicar é o que eu estar fazendo naquele hospital! – continuou Créssida. – Não entendo por que fui parar naquele hospital... Não entendo por que nós duas fomos parar no hospital. Só disseram que nos encontraram desacordadas, na rua, e que nos levaram para lá para averiguação. Disseram que demos entrada à noite, e acordamos na tarde do dia seguinte, e nos liberaram na mesma tarde para...
- Já eu entendo. – interrompeu Maura, ainda carrancuda. – Eu, sim, entendo como fui parar naquele hospital. Agora, sim, posso me considerar membro do fã-clube do Maníaco Mordedor. Pois eu acordei, sabe? Com uma marca de mordida como a de vocês! Olha aqui!
E Maura afastou a gola da blusa e mostrou o curativo no pescoço.
Fiquei apreensivo. Será que as marcas no pescoço dela estariam mesmo menos aparentes que as que Luce deixara no pescoço de Geórgia, conforme Andrômeda garantira?
- Além de ter acordado no hospital, como se tivesse levado um dardo de tranquilizante no traseiro, feito um animal selvagem, ainda acordo com buraquinhos no pescoço! Chuparam meu sangue!... Me anestesiaram e chuparam meu sangue... O tal maníaco tem um modus operandi muito estranho. Em ti, Créssida, foi uma pancada na cabeça. Com o Macário, foi derrubando no chão, foi, né, Macário? – concordei com a cabeça. – Ah. Com a gordinha lá do hospital, como é que é o nome mesmo? Ah, Loreta, né? Com a Loreta foi com pano com clorofórmio, e comigo foi com dardo tranquilizante na bunda!! OH!!! Não me sai da cabeça que o Macário Monstro tem algo a ver com a história. – Maura olhou terrível para mim. – Não sei por quê, mas sinto que o Macário tem algo a ver com a história!
- Eu não tenho não... – menti. Eu sabia de tudo, mas não queria contar a verdade. – Juro. O que quer que tenha te acontecido, pode ter lhe causado confusão mental.
- Talvez seja, Macário Monstro. Não me lembro de nada desde que você fez aquela carranca para mim... Só me lembro que voltei ao hospital, correndo, e, depois... depois... ooh, as memórias das horas seguintes sumiram da minha cabeça!! Quando tento lembrar, tudo o que consigo ver é a face do Macário Monstro diante de mim... Como um vampiro...
Eu queria chorar. Mas não podia. Já havia chorado hoje na frente de algumas mulheres-monstro. E aquelas garotas ali, o que iriam pensar se me vissem chorando? Pensando bem, eu já havia chorado na frente de Maura, mas não na de Créssida... enfim, algo me dizia que eu não podia chorar diante delas.
- Ai, amiga, pare com isso. – Créssida saiu em minha defesa. – Claro que o Macário não teve nada a ver. Que bobagem...
- É só uma leve desconfiança. – falou Maura, olhando enviesado para mim. – Não sei por quê, simplesmente não sei por quê, por quê, porqueporqueporquê... – e deu leves socos na própria testa, ficando a seguir de costas para mim.
- Mas Maura... – balbuciei. – Isso quer dizer que... você não gosta mais de mim?!
Maura me olha de soslaio, com o cenho franzido. E, depois, muda a expressão subitamente, sorrindo para mim. Não mais de cenho franzido. Mas com aquele sorriso zombeteiro com o qual já estava acostumado. E, inesperadamente, me abraça.
- Ah, Macário, que é isso, cara. Claro que eu gosto de você. Eu não sei por que desconfio que você tem algo a ver com a história... mas também não sei por que não consigo deixar de gostar de você... Será que é porque eu simplesmente não paro de pensar em você, seu filho da p(...) gostoso, que até a sua imagem aparece nos meus pesadelos?!
- Comigo é a mesma coisa... – falou Créssida, agarrando meu braço livre, e deixando a pasta cair no chão. – Seu vampiro, seu doce vampiro.
E as duas suspiraram, agarradas a mim. Engoli em seco. E me lembrei, de repente, de Geórgia, da noite em que voltamos a transar – ela também me chamou de “filho da p(...) gostoso” – e da noite em que ela fora “picada” por Luce, aquele... filho da p(...), apenas filho da p(...).
- Macário, Diz aí... – balbuciou Créssida. – Não vai nos contar o motivo de você ter sumido nesses dois dias?!
- Eu... eu sofri um acidente. – respondi, de pronto. – Não foi muito grave. Mas eu também acordei em um... hã... em um hospital, mas foi em um hospital diferente do de vocês. Também fui achado na rua, convalescente. Acho que desmaiei com o susto de uma motocicleta que quase me atropelou... E eu quase não pude vir ao curso hoje, sabem? Eu... eu só consegui alta hoje à tarde. Tive de vir correndo.
- Nossa, mas para quem sofreu um acidente “não muito grave”... – falou Créssida.
- Que história confusa. – falou Maura. – Pelo visto, você também teve a cabeça confundida. Será epidemia de confusão mental?
- Foi complicado, foi muito complicado. – respondi. – Foi uma loucura.
- Por isso mesmo a gente quer explicações.
- Explicações que eu não posso dar nesse momento, garotas. – falei, me desvencilhando do abraço de ambas. – Eu tenho de ir para o trabalho.
- Macário!... – as duas exclamaram.
- Escutem: que tal vocês irem juntas ao meu apartamento, em uma tarde? Aqui na rua, sabem... não é um momento muito apropriado. Vai que o maníaco mordedor verdadeiro apareça para atacar vocês duas de novo?! Vai que ele esteja rondando o campus?
- Macário?! Tem de ser no seu apartamento?! – pergunta Maura. – Você não está pretendendo um... algo mais, não é? Macário Monstro.
- Maura, por favor. – falei. – Minha vida anda tão confusa quanto a de vocês. Não me encontro tão disposto ao sexo nesta ocasião. Não é sexo. É para tentar pensar no que está havendo. Quero explicações tanto quanto vocês. Não divido que já estejamos nas páginas do jornal por causa disso tudo...
- Ele está certo. – falou Créssida, recolhendo sua pasta do chão. – Melhor que pensemos nessa situação com calma, em um lugar que, hum, possamos sentar. Seguros. Mas... Macário, tem de ser no seu apartamento?!
- Bem, foi só uma sugestão. – dei de ombros.
- Bem, eu concordo. – respondeu Créssida. – Pode ser. Qualquer dia desses, nós aparecemos lá para... conversar. E espero que seja só para conversar a respeito deste surto de loucura.
- Claro que é só para conversar. Tô vendo que tem quem pense mais em sexo do que eu... Estarão vocês dispostas mesmo a um... ménage? – falei, fazendo um olhar sacana.
- Macário!... – as duas exclamaram.
- Brincadeira, meninas. E não se preocupem, eu lavei e estou guardando bem as calcinhas que vocês deixaram lá.
E as três acabamos rindo, antes de nos separarmos, cada uma para seu lado.
Mas eu, depois, fiquei cabisbaixo por causa do apelido novo. Macário Monstro... talvez seja nisso mesmo que eu estava me transformando, aos pouquinhos.

Os Monstros (agora eu passo a tratar deles sem as aspas) eram “gente” de palavra (essa palavra, sim, tenho de usar entre aspas).
Eles disseram que viriam, e eles vieram. Nem sempre essa afirmativa foi verdadeira (ainda não esqueci que eles só disseram que iriam viajar, no final de semana passado, e na verdade estiveram escondidos, para me torturar). Mas hoje foi. Eles disseram que viriam, e vieram.
Quase todos.
Não veio aquela multidão dos outros dias – os Animais de Rua não vieram, eu não avistei nenhum dos membros (calculo que eles representem um quarto da gangue dos Monstros). Nem Morgiana apareceu. Mas vários dos principais, sim, vieram.
Até Andrômeda veio, escondendo a cabeleira prateada sob a peruca rosa.
- Oi, Macário. – ela cumprimentou, com uma expressão macambúzia.
- Oi, Andrômeda. O de sempre? – tentei parecer natural.
- Margarita. Sim.
Andrômeda e Luce se sentaram separados, um de cada ponta do balcão. Andrômeda, muito macambúzia. Luce, muito sorridente.
- O de sempre, Luce?
- Bloody Mary, sim.
Atendi rapidamente os pedidos. Mas notei um ar de constrangimento. Luce e Andrômeda evitavam olhar um para o outro. Um só olhava para suas respectivas bebidas. E a mim, só restava trabalhar como se nada tivesse acontecido nos últimos tempos.
Hoje o trabalho não foi tão pesado. Estava tudo, na verdade, um pouco mais calmo. Os pedidos continuavam chegando a mim telepaticamente, sem que o cliente precise manter contato visual comigo.
Os Monstros estavam todos em suas formas humanas, do jeito como conheci. Como haviam clientes humanos “normais” no bar, eles tomaram a precaução de se fazerem passar por humanos excêntricos, adeptos às modificações corporais, aos penteados esquisitos, à maquiagem pesada.
E houve revezamento no balcão. Depois de alguns minutos, assim que terminava sua dose, um cliente saía, indo circular pelo bar, e outro ocupava seu lugar. Apenas para puxar papo comigo. Ninguém quis ativar o jukebox.
De alguns rostos, eu já estava sentindo saudade, mesmo depois de passado cerca de um dia desde que nos vimos.
Ali estava Flávio Dragão, sentado ao lado de Luce.
Ali estava o barbudo Flávio Urso, já bebendo seu uísque com gelo.
- Hallo, Macárrio. Ouvirr falarr que você aceitarr prropôsta de Luce...
- Ouviu? Digo, por quem você ouviu?
- Andrrômeda. Eu passarr no mansôn dela e ouvirr seus grritos. Foi antes de virrmos parra cá. Ela grritarr muito no carra de Luce. Aparrentemân, ela non gostarr do ideia. Ficarr até histêrrica. Olha ela ali.
Andrômeda deu uma rápida olhada para nós, e depois voltou a olhar para a sua taça.
- Mas Luce, olhe ali, parrece non se imporrtarr. Olharr como estarr trranquilo.
De fato, Luce não tinha jeito de quem recebera uma mijada há poucos minutos de um familiar.
- Bem, mas e você, Flávio, gosta da ideia?
- Eu, na verrdade, non me imporrtarr... non fui eu quem fazerr pacto.
E, pelo jeito, Flávio Urso parecia não se importar com nada além de seu copo de uísque. E ele sequer se vexou em engolir a bebida com as pedras de gelo e tudo, diante de mim. A seguir, olhando para os lados, me perguntou:
- Macárrio, você virr Morrgian?
- Morgiana? Pois é, eu vi ela hoje, mas ela não estava... hum... tão bem. Por quê? Digo, por que quer saber dela?
- Sô parra saberr.
- Oh, mas qualquer coisa, pergunte ao Beto Marley, ele estava junto com a Morgiana hoje.
- Estêve? Oh, cerrto.
Ali estava Jorge Miguel, de cabelo muito penteado, bebericando seu conhaque, e me olhando com aqueles olhos vermelhos bifurcados. Quem olhasse, diria que ele estava usando lentes de contato customizadas.
- Ei, Macário. O Luce já veio falar com você? Para combinar de como será o pacto...
- Sim, veio, mas conversar ainda não conversamos.
- Como assim?
- Ele disse que queria tratar dos termos do acordo. Mas fomos interrompidos. Aconteceram tantas coisas...
- Sei. A visita aos Animais de Rua, contra sua vontade... Foi o Beto Marley quem me contou antes de aparecermos aqui. E pelo visto, foi por causa do que aconteceu que a Morgiana não veio. Nem os Animais de Rua...
Ali estava Beto Marley, falando nele, bebendo sua cerveja.
- Ei, Macário, sabe que a Morgiana, a Aura e a Fifi ficaram muito sentidas de você ter fugido da casa?
- Ficaram? Eu... meio que sabia. Meio que estava adivinhando que...
- Ah, mas eu não culpo você. Com aquelas lá não dá pra dar muito mole, mesmo. Você até que fez bem em ter fugido, ou você poderia ser literalmente devorado, saca?
- Hã... é mesmo?
- Eu meio que sei disso, camarada. Mas, de todo modo, te prepara que elas vão querer explicações pra tua fuga. A Morgiana não é do tipo que desiste fácil...
- Obrigado por avisar... – respondi com um ranger de dentes.
Ali estava Breevort, tristonho.
- Você viu a Geórgia hoje, Macário?
- Não vi... Com tudo o que aconteceu hoje... Você soube que eu...
- As notícias se espalham como incêndio na palha seca. Pelo menos, as que dizem respeito a ti, Macário. Mas, quanto a Geórgia... (suspiro) Estou preocupado.
- Eu também. Mas a Andrômeda garantiu que ela já foi para casa.
- Mas ainda assim estou preocupado. Tentei ligar no telefone dela, mas ela não me atendeu... E se o italiano foi procura-la para...?
- O Galvoni? Ele ainda está na cidade?
- Está, Macário. E é isso que me preocupa, pois...
- Você não sabe o endereço da Geórgia, para procura-la?
- Eu me esqueci... Se ela me disse onde morava, eu me esqueci... E isso me preocupa... Snif.
Bem, o que eu podia fazer? Nem eu sei onde Geórgia mora atualmente. Depois eu tento ligar para ela...
Oh, ali está Âmbar, acompanhada de MC Claus e... de Anfisbena.
Hoje, MC Claus resolveu trazer a esposa “oficial” para passar a madrugada no bar. Nos outros dias, ela não esteve presente. Era Âmbar quem acompanhava o gorducho. Agora, estavam as duas, a esposa e a amante. Mas parece que Anfisbena não se importava de dividir o “marido” com a irmã.
No começo, Anfisbena só estava ali, ladeando MC Claus, que tratava de negócios com alguns de seus colegas na mesa de sinuca. Mas chamava alguma atenção, com suas joias, seu penteado e seu vestido diáfano.
Foi só depois que eu terminei de atender os pedidos de todos, quando desocupei um pouco as mãos, que Anfisbena, que estava afastada dos demais, sentou-se em uma brecha no balcão, e me chamou. Ao seu lado, Âmbar e MC Claus.
- Oi, Macário.
- Ah... oi. Hã... Anfisbena. Âmbar. MC Claus.
Anfisbena me olhava sedutoramente. Âmbar fez um olhar que expressava ciúme. MC Claus parecia indiferente.
- Você sabe que eu e a âmbar aqui somos...
- É, ela me contou. Ninfas...
- E você tem vinho para uma ninfa? – ela se manifestou.
- Vinho? Eu... eu tenho. Vários tipos. Qual você prefere?
- Me vê o mais velho que você tiver...
Corri para a prateleira onde se perfilavam as garrafas. O mais velho, o mais velho... Passei os olhos pelas datas expressas nos rótulos. Achei uma garrafa do que julgava ser o mais velho, dizia safra 1950.
- Aqui. – falei, já desarrolhando a garrafa.
- Beleza. Despeje aqui...
Ela sacou, não vi por onde, uma grande taça de metal esverdeado, que colocou sobre o balcão. Não era normal que o cliente trouxesse a própria taça, mas ela deve ter um motivo para trazer.
- Diga quando está bom...
- Pode despejar tudo.
Despejei o conteúdo da garrafa inteiro dentro da taça. Incrível, deu a garrafa toda, sem transbordar. Não achava que daria, mesmo sendo a taça bem larga.
Anfisbena deu uma leve mexida na taça e sorveu um pequeno gole, para provar o vinho. Pela careta que fez, não estava a seu gosto.
A seguir, ela enfiou os dedos dentro do decote (oh, mas que seios!...), e sacou dali de dentro um saquinho com alguma coisa que parecia ser uma mistura de ervas em pó. Ela adicionou ao vinho uma pitada da mistura. Depois, da armação dos cabelos, ela tirou um objeto que parecia uma caneta, fino e comprido, que ela usou como uma colher para mexer o vinho. E, depois, ela bebeu, desta vez um gole longo. E, ao que parece, estava a seu gosto.
A seguir, passou a taça para Âmbar, que sorveu um gole longo. Por um momento, achei que ela fosse beber tudo. Mas não: ela passou a taça, a seguir, para MC Claus, e ele, sim, tomou tudo, em um único gole. Ou assim parecia. Porque ele, a seguir, passou a taça... para mim.
- Tome este último gole, Macário.
- Hã?! Mas...
- Pode tomar.
Eu acabei me lembrando de uma coisa. Na semana passada, os Monstros me pagaram doses de bebida, mas ministraram drogas nelas para me deixar vulnerável a magias de controle. Foi assim que transei com mulheres-monstros em sonhos, foi assim que pensei que tinha virado vampiro, foi assim que virei saco de pancada de Luce... foi assim que...
- Pode tomar, Macário. – falou Âmbar. – Desta vez não tem drogas. Ninguém vai lhe sacanear desta vez.
- T... tem certeza?
- Vai, Macário. Eu conheço a Anfisbena. Ela não seria capaz de...
Ainda duvidando, resolvi beber. Era só um gole, mesmo, que havia sobrado. O máximo que podia acontecer, pensei eu, era a Anfisbena resolver “chifrar” o MC Claus comigo no portal mental.
Bebi. E, surpreendentemente, o vinho estava bem doce.
- Puxa!... – exclamei.
- Algo errado, Macário?
- Não, nada. O que é isso que você acrescentou no vinho?
- Apenas uma mistura de ervas aromáticas. Nós não tomamos vinho puro, puro, puro suco de uva fermentado, sabe? Eu acho amargo. Gostamos de misturar coisas ao vinho. Como na Grécia antiga.
- Como na...
- Sabia, Macário, que os gregos costumavam misturar substâncias ao vinho puro, para deixa-lo mais... ao gosto deles? Eles misturavam ao suco de uva especiarias, resina e até gesso. E costumavam servi-lo diluído com neve ou água do mar, dependendo das condições do dia...
- Não sabia.
- Nem eu sabia, até o casamento. – falou MC Claus. – Esteve apreensivo. Achou que fosse o quê?
- Nada, não. – respondi. – É a primeira vez que você traz a esposa ao bar. Pelo menos, a este bar. Sempre achei que a Âmbar que fosse sua esposa.
- Bem, não é frequente, na verdade. É que eu saio do escritório direto pra “night”. E só tenho minha secretária pra me fazer companhia...
- Enquanto eu... fico em casa, à espera. – falou Anfisbena. – Tendo por companhia as minhas irmãs. As minhas outras irmãs, enquanto esta sortuda aqui... – olhou para Âmbar. – Hoje eu tinha resolvido ver o que a Âmbar viu em você. Agora sei. Você, Macário, é um garçom muito prestativo.
- Sou?
- Você é um funcionário modelo. Do tipo que raramente se vê hoje em dia. Que atende aos outros, sem reclamar. Não é à toa que você mereceu um gole da mistura que comumente não dividimos com outras pessoas, Macário.
- É... é mesmo?! Bem... e o que acontecerá agora? Digo, comigo?
- Não posso contar agora. – falou Anfisbena, com uma piscada. – Você saberá em breve. Vamos, querido? Vamos, mana?
E os três se afastaram do balcão. Anfisbena se virou para mim e deu uma piscada. Fiquei desconcertado.
Pelo jeito, ela tinha alguma forma de se entreter enquanto estava sozinha em casa. Alguma forma bem safada. Ela não parecia uma mera mulher de Atenas.
Em seguida, foi a vez de Luce ocupar o lugar no balcão.
- Outro Bloody Mary para a saideira.
Assim que coloquei a nova dose sobre o balcão, Luce começou a falar.
- Que moral, hein, Macário? Ser abençoado pelas ninfas!
- Abençoado?!
- Digamos que você caiu nas graças das ninfas. Não é qualquer um que tem o direito de tomar um gole do “adoçante” das ninfas, com vinho! Você pode se sentir privilegiado, hein? Hein? Ah, cara, queria estar no seu lugar.
Eu até cheguei a notar que Luce não parava de olhar para Anfisbena. Quando não olhava para mim, de qualquer ponto do bar, ele prestava muita atenção nos passos de Anfisbena.
- Hã... você sabe quais são os efeitos da mistura? – perguntei, com apreensão.
- Eu não sei. Eu não tive tal oportunidade. Nem sei ao certo. Nunca mais ouvi falar dos que beberam da mistura...
Engoli em seco.
- Macário. – continuou Luce. – Em breve as mudanças em tua vida começarão. O que mudará a partir do nosso contratinho... Queria tratar com você a respeito delas ainda hoje, mas... é melhor não.
- Por que não posso saber? – perguntei.
- Com tudo o que aconteceu, você deve estar meio estressado. Raptos inesperados, intromissões... Eu mesmo fiquei chateado com tudo isso. E ainda mais de você ter me visto sendo humilhado pelo MC Claus. Você também riu de ter me visto com aquela bandeja de lixo sentado entre Âmbar e Anfisbena, não foi?
- Eu... não pude resistir.
Na verdade, o que me fez rir foi ver Luce desfazer aquele sorriso irritante, que agora ele ostentava como se nada tivesse acontecido.
- Ele vai ver, o Duende Rei ainda vai ver o que vai acontecer por causa disso, espere pra ver. Onde já se viu, só porque é Duende Rei, ficar humilhando assim um pobre vampiro, só por causa dos nossos negócios comuns?! (suspiro) Mas o que me deixou mais chateado é de não poder falar o que queria com você. Até parece que não querem que eu converse com você... Então, por causa desse pessoal todo, e de suas interferências, é melhor que os próximos dias falem por mim. Mas não se preocupe, Macário, que não vai ser nada ruim.
- Puxa, estou ansioso pelos próximos dias. – falei, com um acento irônico.
- Vá para casa descansar, amigo. Saia daqui e vá direto para casa. Nós nos encontraremos quando não tiver tanta gente ao redor. Espero que não venha nenhuma mulher lhe incomodar, mas, por via das dúvidas, feche bem as janelas, as entradas de esgoto...
- Es... tá bem.
E Luce voltou a borboletear pelo bar.
Depois desses, mais ninguém puxou papo comigo. Nem mesmo Andrômeda. Falar, agora, só para fazer pedidos.

Bem, agora aqui estou eu, de volta ao meu apartamento, depois de tão movimentadas tarde e noite. Pronto para deitar e dormir.
Tomei antes as devidas precauções, conforme Luce recomendou. Fechei bem a janela do banheiro. Tranquei as janelas. Fechei os ralos das pias da cozinha e do banheiro. Até o ralo do chuveiro cobri com uma tábua. Vai que alguém que pode encolher de tamanho resolva invadir meu quarto.
Na cama, até olhei para os lados, para verificar se eu estava mesmo em meu quarto, deitado na cama que eu sabia ser minha.
É. Ninguém. O máximo que pode acontecer é a minha mãe aparecer de repente, só ela possuía uma chave sobressalente desse apartamento. O mínimo, é alguém invadir os meus sonhos. Mas, ao menos estava mentalmente preparado para o que podia me esperar. Assim espero.
Decerto, já podia esperar que Anfisbena apareça no meu sonho. Ainda custo a acreditar que aquela mistura de ervas seja um simples adoçante. Mas o vinho parecia ter ficado, sim, digno de... ninfas. Adocicado. Bom mesmo. Ainda sentia o gosto doce na boca...
Aah, Anfisbena... você é tão linda e elegante... e que seios... você escondeu aquele saquinho de ervas no decote de propósito, não foi? Você é como a irmã... como será que são as outras irmãs dela? Será que são... hmm...
Eu comecei a delirar. Aquela mistura de ervas não é adoçante, não. Eu fui drogado de novo. Fui sim... O que será que Luce quis dizer com “nunca mais ouvi falar dos que beberam a mistura”?
Adormeci. E tendo o sorriso de Anfisbena diante de meus olhos.
Oh, céus, não é possível que eu já esteja desejando Anfisbena! O que está havendo comigo?!
Me perdoe, Âmbar...
Eu sou um mulherengo asqueroso...

- Macário? Você está dormindo, ainda?
Ouço uma voz melíflua. Feminina.
Aah, eu sabia. Anfisbena deve ter ativado o portal mental. Ela estava me chamando! Deve ser um sonho que...
Mas, quando abri os olhos... eu não estava no meu apartamento. O que eu já esperava, mas...
Tampouco parecia o apartamento de Âmbar, que eu já tinha visto em sonhos. O local era pura bagunça. Roupas jogadas por todo canto. Caos. Um caos que me era familiar...
E a mulher diante de mim, em roupas mínimas... não era Anfisbena.
- Consegui, que ótimo!... Você está aqui, Macário!...

Era Eliane, e seu cabelo bicolor.

Próximo capítulo daqui a 15 dias.
Passados 31 capítulos, como está ficando esta série? Boa? Ruim? Devo melhorar? Parar, mesmo sem conclusão? Manifestem-se! Deem pelo menos um sinal de que este folhetim está mesmo sendo acompanhado por pessoas que leem!
Até mais!

Nenhum comentário: