Hoje, segunda-feira, 15 dias depois que foi feito o anúncio das mudanças na publicação do meu folhetim ilustrado para adultos, MACÁRIO, 15 dias após a publicação do último capítulo, entra no ar um novo capítulo. Não como algo adequado para a segunda-feira de carnaval... ou não? De todo modo...
ATENÇÃO: leitura não recomendada para menores de 18 anos. Contém cenas de atos de grosseria, violência urbana, bizarrices, insinuações de submissão feminina e de conotações políticas.
Já estava esperando que Luce e Andrômeda, ali
em minha cozinha, já começassem a se agredir, sob o olhar de Âmbar. Talvez
Âmbar interferisse na discussão. Eu, do meu quarto, a me vestir, estava...
esperando o que iria acontecer.
Ouvido colado à parede, procurava captar a
possível briga.
De fato, estavam se agredindo. Verbalmente. E
apenas isso. Felizmente.
Ou assim parecia, porque, de repente, os dois
irmãos começaram a discutir, usando uma língua que eu não conseguia entender. Não
era espanhol, nem inglês, nem italiano. Parecia ser uma língua europeia que eu
não conhecia. Talvez uma língua do leste europeu. Porém, entre elas, podia
distinguir meu nome, eles pronunciando “Macário”.
Talvez seja para que eu não pudesse entender,
mesmo estando ouvindo de um cômodo próximo. E, ao que parece, Âmbar também
entendia esse idioma, porque estava discutindo também. E usando o idioma.
Mas por quê? Por que, naquele momento,
dispensavam o português e discutiam em... russo, romeno, armênio, sei lá?! Eles
teriam algo para esconder de mim? Sei que era de mim que eles estavam
falando... Várias vezes ouvi eles falando “Macário”, ou “Macarius”, que devia
dar no mesmo.
Agora fiquei chateado.
Terminei de me vestir. Conferi o conteúdo de
minha mochila, que estava agora tão surrada, coitada... não estava esquecendo
nada. Joguei a mochila nas costas. E saí do quarto.
Mas não entrei de imediato na sala. Dei uma
espiada antes na situação. De fato, estava ocorrendo a discussão. Andrômeda e
Âmbar estavam mais nervosas, e gritavam com Luce, que, de jeito nenhum, perdia
a calma, e aparentava um irritante bom humor. Os três ainda algaraviavam
naquela língua estranha, como se na minha sala estivesse sendo gravada uma
novela que ia passar exclusivamente no leste europeu. Entrei em cena.
- Estou atrapalhando a discussão? –
perguntei, de supetão.
- Ah, oh... Ah, Macário, você se vestiu
rápido... – Luce pareceu ter se atrapalhado.
- Homens se vestem rápido. – retruquei.
- Mas eu também me visto rápido... – falou
Âmbar.
- Há, não duvido. – falou Luce. – Poucas
vezes te vejo com roupas mais compridas que essas aí, por isso você se veste
rápido, economiza muito no tecido... – Âmbar, em resposta, fez uma cara feia e mostrou
o dedo médio para Luce, mas este nem se importou com a grosseria. – Se fosse
como a minha irmã, que demora no toucador...
- É mentira. Eu também me visto rápido. –
falou Andrômeda, com uma voz monótona.
- Aham, sei. – Luce olha de soslaio para a
irmã.
- Me visto rápido sim, Luce. Não sou como
tantas outras mulheres, eu já chego no meu guarda-roupa tendo em mente o que
vou vestir. Não tenho tantas roupas assim...
- Claro, claro... – responde Luce, irônico.
Em resposta, Andrômeda avermelhou o rosto, de raiva. – Já vai sair, Macário? –
Luce voltou seu olhar para mim.
- Tenho de ir para o meu curso. – respondi,
secamente. – Perdi dois dias por causa de toda essa confusão. Uma porque você
resolveu me fazer de saco de pancada, e a outra porque você me levou para
jantar.
Eu tenho certeza que Luce corou. Andrômeda conseguia
ficar com o rosto vermelho, apesar de ser vampira; Luce também conseguia. Eu vi
que seu rosto, ao menos, ficou rosado. Tenho certeza que vi. Porém, foi apenas
por uns poucos segundos, depois, ele retomou o estado normal.
- Calma, amigão. – Luce sempre sorrindo. – Hoje
ninguém vai te atrapalhar. Mas eu gostaria, sim, de ter uma conversa com você.
Quem sabe a gente não conversa no caminho?
- Você costuma ir para a faculdade a pé,
Macário? – pergunta Âmbar.
- S... Sim. Não é tão longe. – respondi, tentando
manter o tom seco. – Só umas cinco ou seis quadras.
- E você anda tudo isso de mochila nas
costas? Uau, por isso você está em forma... Que horas você entra? – pergunta
Luce.
- Bem... que horas são? – perguntei.
Luce puxa a manga da camisa e consulta um
relógio de pulso.
- Quase cinco da tarde.
- Oh! E eu entro às seis! – respondi. – E
ainda preciso jantar no Restaurante Universitário antes!
- Ah, tem um tempinho ainda. – falou Luce. – Gostaria
de uma carona? Vim de carro.
- Hum... pode ser. – respondi, agora
timidamente.
- Meninas, gostariam de uma carona? – Luce se
volta para as garotas.
- Para onde? – perguntou Âmbar.
- Até o campus da faculdade. Imagina só a
moral do Macário se o virem chegando ao curso dele de carona num carro de luxo,
com gostosas ladeando... – Luce não parava de sorrir. Como eu gostaria que esse
cara fizesse outra expressão, podia ser aquela expressão amuada que ele fez na
churrascaria ao falar do irmão morto.
- Se você depois passar lá na minha casa, eu
aceito. – responde Âmbar, com um muxoxo.
- Eu volto a pé. – falou Andrômeda. – Ou
melhor, posso voar, também. Então, vou voando.
- Aah, Andrômeda, por quê, maninha, só porque
eu estou dirigindo? – Luce parecia irônico ao se dirigir à irmã que também fazia
muxoxo. – Mas o Macário aqui sabe que eu não dirijo mal, né, Macário? Eu dirijo
mal?
- Não, Luce. É verdade, Andrômeda, ele não
dirige mal. – respondi, timidamente.
- Não é por isso. – falou Andrômeda, fazendo
esforço para não avermelhar o rosto de novo.
- Ah, maninha, não precisa implicar comigo.
Por favor... Ah, Macário, diga para ela aceitar a minha carona, por favor...
Luce parecia implorar, mas ainda sorria,
acentuando o sarcasmo da situação.
- Bem, eu... hã... – comecei, mas Andrômeda
me interrompeu.
- Com sua licença. Tchau, Macário.
E Andrômeda se transformou em morcego, e
saindo voando pela janela da cozinha. Antes, eu via pela primeira vez um
morcego bravo, e depois chorando. Agora, pela primeira vez, eu via um morcego
fazendo beiço. Não era um morcego legítimo, é fato, mas...
Âmbar e eu demonstrávamos estarmos surpresos;
Luce não.
- Essas mulheres... – falou Luce, olhando
para a janela, e depois para mim, sempre sorrindo. – Então, Macário, já está
pronto?
- Sim, sim... e... e você, Âmbar, pronta?
- Eu estou. – ela respondeu, com um sorriso
ébrio, e apoiando uma mão no meu ombro. – Desde que você fique ao meu lado no
carro...
Eu podia sentir: ela ainda queria sexo
comigo. Ela queria transgredir o acordo de deixar o “assunto” para o final da
semana. Mas estava lutando contra seus instintos. Ainda mais com o Luce diante
dela.
- Vamos então? – falou Luce.
Deus, como eu estava odiando aquele sorriso.
Pelo jeito, Âmbar também. Já estava me arrependendo de ter feito aquele acordo
com ele.
Nós três descemos juntos a escada, sem falar
nada. Já na rua, defronte ao automóvel – outro modelo que deve ter sido montado
com diferentes tipos de sucata, mas que tinha aparência de novo – Luce voltou
seu olhar para mim.
- Então, Macário... – ele já começava a
falar.
Mas, de repente... as coisas começaram a
acontecer muito rápido.
Inesperadamente, uma motocicleta veio em
nossa direção. Vinha em alta velocidade.
A motocicleta invadiu a calçada,
desacelerando um pouquinho.
Ela quase passou por cima de nós três. Passou
por trás de nós, raspando.
A moto passou rente a Luce e Âmbar. Mas a
mim...
Antes de ganhar a rua novamente, o
motociclista me agarrou pela cintura. E, antes que eu percebesse, me vi sentado
na garupa da motocicleta, que recuperou a velocidade e ganhou a rua.
Foi um susto. Não consegui nem gritar.
Com um braço, o motociclista segurava minha
cintura. Com o outro, segurava o guidão da motocicleta. Era uma manobra
incrivelmente perigosa, mas parece que o cara tinha seu pleno domínio.
Só depois que eu me vi muito afastado de Luce
e Âmbar, que evidentemente ficaram muito surpresos, é que consegui gritar por
socorro.
E aquele motociclista era maluco! Se atrevia
a pilotar a moto com uma só mão, enquanto a outra segurava-me pela cintura! E
eu, sentado na garupa, perigosamente equilibrado, as duas pernas suspensas em
apenas um lado, podendo cair na rua a qualquer instante.
Eu gritava por socorro, mas prestava atenção
apenas ao asfalto, não me atrevi a olhar melhor para o motociclista, ou para a
moto.
Cerca de duas quadras percorridas depois, o
motociclista desacelerou, deu uma parada na frente de um poste. Eu já ia descer
e tentar fugir, aproveitando o ensejo, mas não consegui. Sentia a mão do
motoqueiro enlaçando minha cintura.
- Vamos manter você seguro, Macário.
Hein? O motoqueiro sabia meu nome?! Mas
quem...?
Não consegui perguntar. O motoqueiro enfiou
em minha cabeça algo que não consegui ver de onde tirou, parecia um balde. Mas,
quando vi melhor, era um capacete, daqueles muito simples, sem viseira, só o
recorte para o rosto na superfície redonda. O motoqueiro ajustou o capacete em
minha cabeça, e, cerca de cinco segundos depois, a motocicleta partiu novamente,
na mesma velocidade. E eu ainda sentado perigosamente na garupa.
E, com o motoqueiro enlaçando minha cintura,
eu não ia embora de jeito nenhum. Também seria arriscado que eu tentasse cair
para a rua, com o risco de ser atropelado por algum dos carros que passavam por
nós.
Estava assustado, muito assustado. Com uma
mão ele agarrava meu corpo, me impedindo de fugir, e pilotava a moto com a outra
mão livre!!! Como ele conseguia fazer isso?!
Ooh... ele vai bater com aquela moto!!! Vai
desequilibrar a moto!! Vai derrapar, e me jogar no asfalto! E a moto realmente
estava quase caindo para o lado... Ainda mais que o maluco pilotava com uma
só...
Esperem!
Olhei melhor para o motoqueiro, consegui
prestar atenção nele: ele estava com as duas mãos no guidão!
Mas eu sentia um braço me...
Aí que eu reparei, horrorizado: aquele
motociclista tinha quatro braços!!! Dois seguravam o guidão da moto; os outros
dois seguravam meu corpo firmemente, como um cinto de segurança bizarro. Os
braços extras saíam de suas costas! O casaco dele tinha quatro mangas... e...
- SOCORRO!!! – gritei novamente.
- Fica frio, Macário, você está seguro em
boas mãos! – gritou de novo o motociclista. – Entendeu?! Seguro em boas mãos!
Ah, ah!!!
- Socorro!! – tornei a gritar. – Eu fui
sequestrado!! Ajudem!!!
Mas, para meu azar, não estava passando
ninguém naquela parte da rua. Ninguém que pudesse ver um rapaz sendo
sequestrado. E, mesmo se passasse, ninguém ouviria, pois o motoqueiro fazia o
motor da moto roncar forte, abafando meu grito.
- Não foi sequestrado não, Macário, não se
preocupe! – gritou uma outra voz, feminina. – Confie na gente!
Duas vozes? Será que o motociclista fazia duas
vozes?! Ou então a segunda voz vinha da... motocicleta?
Mas, reparando melhor... a motocicleta,
apesar dos movimentos do piloto, estava bem estável. Na verdade, ela parecia
estar se dirigindo sozinha!
- Está confortável aí em cima, Macário? –
disse a voz. – Fique tranquilo que já estamos chegando! Segure ele bem aí,
Ringo!!
- Estou segurando! Ele está bem firme! –
falou o motociclista. – Ah, olha só,
Macário, sem as mãos!!
E tirou as mãos do guidão. Depois, ergueu os
pés. Mas sempre me segurando. Porém, a moto não balançou, manteve-se estável no
asfalto.
- Ringo, pare com isso! – falou a voz. – Vai
derrubar vocês dois desse jeito!!!
- Pô, desculpe aí, Aura. Só queria mostrar
pro Macário que você está no controle!
- Pare com
isso, Ringo. As coisas não estão fáceis pra mim!
Oh céus, é verdade... era a motocicleta que
estava falando! Aquela motocicleta estava viva!! E tinha nome... E... e sabia
meu nome!!! Eu estava na garupa de uma motocicleta provavelmente amaldiçoada!!!
E um demônio de quatro braços estava me segurando!!!
- SOCORRO!!! – gritei de novo.
- Não precisa gritar, Macário! – gritou o
motociclista que, pelo que entendi, se chamava Ringo. – Está tudo bem! Tudo sob
controle! A Aura está cuidando bem de nós! Daqui a pouco a gente explica tudo
pra você!
- Não! Eu quero sair daqui! – gritei. – Eu
quero a minha mãe!!! Buáá!!!
- Deixa de ser chorão, Macário!! Ah, ah... –
riu a motocicleta, que, pelo que entendi, se chamava Aura.
Tentei gritar novamente, mas a moto deu outro
grande ronco de motor, abafando minha voz.
E a motocicleta ameaçou empinar conosco em
cima. Mas foi só um pequeno susto, ela só ameaçou, deu um pulinho no asfalto,
mas não derrubou ninguém. Depois, só de farra, fez alguns ziguezagues pelo
asfalto, mas ninguém ali perdeu o equilíbrio – Ringo estava com as pernas
firmemente presas ao assento. E Aura nem estava muito rápida, na realidade: a
motocicleta parecia preocupada comigo, em me manter seguro em sua garupa. A
motocicleta Aura era autônoma; a função do motociclista Ringo era apenas a de
me manter seguro na garupa da moto. Mas, ainda assim, eu estava com muito medo.
E estava, sim, chorando.
- Parem esta coisa, pelamordedeus!!! –
continuei gritando. – Socorro!! Fui sequestrado!!!
- Já estamos chegando, Macário! Calma! –
falou a motocicleta, dando outro ronco, abafando meu grito.
Mas não fomos muito longe. Eu conhecia aquela
parte da cidade, embora não passasse muito por ali: era o bairro que ladeava a
estrada para a saída da cidade. Não era tão longe do campus universitário. A
moto andou por algumas ruas, fez algumas curvas, percorreu um labirinto de
quarteirões. Mas será que quem estava passando na rua estava notando que havia
um rapaz em perigo em cima da moto? Ou talvez pensavam que os dois caras em uma
moto eram apenas arruaceiros em manobras perigosas? Atualmente, todo mundo tem
medo de ver dois caras em uma moto, por motivos de falhas na segurança
pública...
Calculo que não foram mais que seis ou sete
ruas que percorremos (e como elas pareceram longas), até chegarmos em um trecho
do bairro onde as casas rareavam, estavam mais esparsas entre terrenos não
ocupados por construções. Aura parou na frente de uma casa abandonada, ou que
apenas parecia abandonada, cercada de terrenos baldios, o terreno cercado
apenas por um muro baixo, de tijolos, que estava descascando.
A casa estava até intacta, só uns poucos
sinais de deterioração, manchas, rachaduras, partes com tijolos expostos. Uma
casinha simples de alvenaria, que estava para alugar ou vender, mas que alguém
resolveu ocupar sem pagar nada. A prova disso era que a casa precisava de uma
reforma, mas ninguém se mobilizou ainda. A única preocupação de seus ocupantes
foi cortar a grama que cercava a casa. De dentro da casa, vinha uma som de
guitarra, uma música improvisada.
Assim que a motocicleta parou, o motociclista
se voltou para mim e ordenou:
- Pode descer.
Os braços extras me soltaram. E, tremendo,
com as pernas bambas de susto, desci da moto. Enxuguei minhas lágrimas.
O motociclista desceu também. Aí, comecei a
reparar melhor no sujeito.
Ele não tinha apenas quatro braços: tinha
seis. Os outros dois braços apareceram depois que descemos da moto. Brotaram de
seu corpo como que magicamente. E a jaqueta, feita de algo que parecia couro,
também deveria ser mágica, pois, assim que os outros braços “brotaram”, as
mangas extras da jaqueta brotaram junto.
O motociclista, com dois braços, tirou o
capacete. E reconheci: também era um dos “monstros” do bando de Luce. Não era
um dos membros do círculo principal, mas era um dos tipos que integravam o
grupo maior – era do pessoal que ia para o bar após a sua abertura.
Não sabia, até então, que era chamado de
Ringo. Mas eu podia reconhecer aquela cabeça raspada, deixando apenas um tufo
de cabelo caindo em sua testa, como uma pequena cortina.
- Oi, Macário, desculpe aí. – ele falou, com
um sorriso, e movimentando os braços que não seguravam o capacete.
- M-ma-ma-ma-ma... – comecei a gaguejar.
- Desculpa o susto, Macário. Sério. Você tá
legal?
- Ma-ma-ma-ma-ma... – estava nervoso demais
para articular alguma palavra.
- Não fica em choque não, Macário. Mil
desculpas... – falou a motocicleta.
Mas acabei ficando ainda mais nervoso.
De repente, a motocicleta empinou sozinha
sobre a roda traseira. E, na minha frente, ela se metamorfoseou, tal como Âmbar
fazia quando se transformava em louva-a-deus: a motocicleta se transformou em
uma mulher!
Fiquei mudo.
Na primeira olhada, a motocicleta parecia bem
normal, uma motocicleta simples, de uso exclusivo na cidade, do tipo usado
comumente pelos entregadores de pizza. Mas agora... Toda a estrutura da
motocicleta se transformara em uma garota... exceto as rodas. Ela tinha uma
roda presa entre os pés, enfiados dentro de botas de cano alto, e a outra firme
entre as mãos, enfiadas dentro de luvas de couro grosso; e as rodas rapidamente
foram jogadas para o lado, apoiadas no pequeno muro da casa, quando a garota se
colocou em pé.
Era uma garota bonita, de traços fortes, e
cabelo cortado curto, rente à cabeça, quase raspado. Vestia, além das botas e
das luvas, uma calça apertada e uma camiseta rente ao corpo magro, os seios
meio comprimidos. As roupas tinham as mesmas cores da então motocicleta. As
botas e as luvas apresentavam sinais de desgaste por conta do atrito com os
eixos das rodas da moto, mas ela nem parecia se importar – elas deviam proteger
bem suas mãos e pés, e, além disso, ela devia se transformar em moto com
frequência. Também fazia parte do grupo dos “monstros”, embora não soubesse seu
nome.
- Uff... mas isso realmente cansa! – falou a
garota, se esticando. – Ter de carregar dois caras nas costas...
- Você que escolheu esse poder, Aura. – falou
o rapaz dos seis braços.
- Não escolhi não – falou a garota. – Eu
posso me transformar em muitas coisas, a moto é só uma delas. Mas eu não
escolhi ter essa capacidade. Não pude escolher nem o mundo onde nasceria. Se eu
soubesse que iriam se aproveitar de mim dessa maneira...
- E eu não escolhi ter vários braços... Nem
de poder gerar braços o quanto quiser. Mas eu nem estou reclamando... –
enquanto falava, o rapaz gerou mais dois pares de braços, um saindo do peito,
outro saindo das costas. Era apenas para se exibir, mas eu fiquei chocado.
Enquanto gerava braços, ele reclamava com a garota. – Vai, nos acuse de
machistas, agora. Afinal, dois caras em cima de uma motocicleta... de uma garota
motocicleta, aliás...
- Ah, Ringo, sabe que não dou tanta
importância assim pra isso... – falou a garota que, certamente, se chama Aura.
– Não dou tanta importância se você depois me levar pra balada, como você
prometeu...
- Aah, como não, benzinho?
E os dois, por um breve minuto, trocaram um
olhar amoroso. Depois, Aura se voltou pra mim:
- Oi, Macário. Não sei se fomos apresentados
já, mas... enfim, meu nome é Aura. Esse daí é o Ringo. – e apontou para o rapaz
dos braços.
- Prazer, Macário. – falou, estendendo três
braços para mim. – Epa, desculpe. – E fez sumir seus vários pares de braços, deixando
apenas dois, um para segurar o capacete, e usando apenas uma mão para apertar a
minha. – Ringo. Ringo Starr Segundo.
- Ri... ri... ri... – gaguejei.
- Não ria, por favor.
- Ri... Ringo Starr? – consegui articular
palavras.
- Ah, é que ele é o baterista da banda, e diz
que é herdeiro do baterista dos Beatles. – falou Aura.
- Que nada, gata. Sou é herdeiro do John
Bonham. Sabe, o baterista do Led Zeppelin. Ringo Starr é mais por... modéstia.
– e deu um sorriso zombeteiro.
- John Bonham, sei... – Aura fez um muxoxo. –
Como se sua técnica se comparasse à do Bonham, que até podia largar as baquetas
para tocar com as mãos até elas sangrarem...
- Ah, mas espere pra ver, assim que a banda
chegar ao Rock in Rio... espera pra ver...
- Ba... banda? – gaguejei.
- Depois a gente apresenta pra você. – falou
Aura, sorrindo. – E mais uma vez desculpe o mau jeito, ter de te tirar assim de
casa. Aliás, que bom que você é magrinho, nem incomodou de levar você na
garupa... E ainda bem que você não estava levando muita coisa na mochila...
- Ma-ma-ma-ma-ma... – voltei a gaguejar.
Não sabia o que fazer, se chorava, se
gritava, se urinava nas calças. Comecei este dia conversando com uma garota
louva-deusa, depois com dois irmãos vampiros. Agora, conversava com dois punks:
um de seis braços, e outra que podia se transformar em moto. Mas, para dois
punks, pareciam até educados.
- Desculpa mesmo, Macário, mas é que é
urgente o que querem falar com você. – falou Ringo, até mesmo juntando as seis
mãos em sinal de quem pedir perdão. – Por isso pediram para nós trazermos você
pra cá...
- Ma-ma-ma-ma-ma...
- Tem alguém aqui que quer falar com você. –
e apontou três braços para a casa.
- Ma-ma-ma-ma-ma...
- Vem, Macário. – falou Aura. – Aí você
conhece o resto da turma.
- Não se preocupe que ninguém aqui come carne
humana. Ah, ah...
- Ma-ma-ma-ma-ma...
E, com duas de suas mãos, Ringo me puxou. Eu
tentava articular alguma frase, mas estava nervoso demais. Tudo acontecia muito
rápido.
Fui raptado, levado para uma casa. Decerto
haviam outros “monstros” me aguardando ali dentro. Mas decerto nada ruim me
aconteceria, pois conheciam minha reputação, sabiam que eu sou o Macário dos
drinques.
E algo me dizia que eu ia perder outro dia de
faculdade.
Fui levado sem resistência para dentro da
casa, que estava bagunçada.
A casa foi ocupada, evidentemente, por uma
gangue estilo anarquista, pois a peça que parecia ser a sala de estar estava
bagunçada, suas paredes pichadas (reconheci até o símbolo do anarquismo, o “A”
mal inscrito dentro do círculo, pintado a tinta spray na porta), garrafas de
bebida e embalagens de comida coalhavam o chão empoeirado. Havia música vindo
do outro cômodo, o que parecia ser a cozinha – música abafada pela porta
fechada. Música de guitarra e de baixo, parecia ser uma banda ensaiando. Ringo
e Aura falaram algo sobre uma banda, então, devia ser a afinação dos
instrumentos até os outros membros chegarem.
Sentados em grandes almofadas, os únicos
móveis presentes na “sala”, haviam mais três pessoas, mas aparentemente não
deviam integrar a tal banda. Se eram para serem os porteiros do lugar, eles não
estavam desempenhando um bom serviço, pois praticamente nem se moveram de suas
distrações quando entramos.
Eu conhecia todos, também faziam parte do
grupo dos “monstros”, já lhes servi bebida. Um era um sujeito cheio de
piercings e alfinetes de segurança – as populares joaninhas – enfiados em seu
rosto. Usava um penteado estilo monge, o cocuruto e os lados da cabeça
raspados, um círculo de cabelo circundando a cabeça como uma linha de trópico
de um globo terrestre. De camisa curta, ele estava, nesse momento, ocupado em
enfiar mais joaninhas na pele de seus braços. Estava tentando cobrir cada
centímetro de sua pele livre de roupas com joaninhas. Até no cocuruto haviam
joaninhas espetadas! Meu coração bateu forte.
As outras duas, sentadas juntas numa mesma
almofada, eram um casal. Um casal que se agarrava e se beijava ferozmente, num
abraço apertado. Tão apertado que os braços de uma delas – aparentemente eram
os da garota – faziam duas, três voltas em seus corpos. Não pareciam braços,
aliás, pareciam tentáculos de polvo. Felizmente, os dois estavam vestidos, e
estavam apenas nos amassos. Não estavam transando. Seria muito constrangedor se
estivessem transando ali, em uma sala, com as janelas bem abertas recebendo a
luz do fim da tarde, e na frente de um rapaz que enfiava agulhas em si mesmo.
- Ô Pauley! – gritou Ringo para o rapaz dos
alfinetes.
Este levou um grande susto, e gritou.
Evidentemente, se machucou enquanto tentava enfiar o alfinete em seu braço.
- Aai!!! Olha o que você fez, Ringo!!! –
gritou o rapaz dos alfinetes. – Quase atingi uma veia!!! Seu filho da...
O casal parou de se beijar e ficou olhando
para nós. Depois, se levantou da almofada.
- Pare um pouco de se espetar e vai chamar a
Fifi. Diga que o Macário está aqui!
- Ah, tá legal. – disse o rapaz dos
alfinetes, se dirigindo para o que parecia ser a cozinha. Mas antes, se virou
rapidamente para mim e disse: – Oi, Macário. Tudo bem com você? Veio assistir
os Animais de Rua também? Vou avisar todo mundo.
Entrou pela porta e a fechou de novo.
- Fi... fi... fi... – gaguejei.
Eu tinha ouvido certo? O Ringo realmente
falou “Fifi”? A garota que matei em sonhos?! Mas espere, eu a vi naquele
galpão, junto com os outros monstros, viva. Ela fazia parte da gangue?!
- É a Fifi, você conhece, né, Macário? A
baixinha. – falou Aura, respondendo minha pergunta mental. – Ela quer falar com
você.
- Fi... fi... ah... aquela Fifi? – consegui
soltar minha voz.
- É, aquela Fifi, você lembra? A baixinha, a
que anda com aquelas gostosas lá do círculo do vampirão lá, o Luce. – falou
Ringo.
- Eu... eu sei quem é. – falei. – E... a Fifi
está aqui?
- Ela é uma de nossas líderes. – falou o
rapaz que estava na almofada, com a garota ainda agarrada nele. – Aliás, tem
outra das garotas do Luce aqui conosco. Ah... Oi, Macário, tudo bem?
- E aí, Macário. – falou a garota, agarrada
ao rapaz como um polvo.
- Ah, Macário, o que saiu agora se chama
Pauley. – falou Ringo. – E estes aqui são o Boland e a Gil. – e apontou para o
casal.
- Oi... – balbuciei.
Os braços de Gil se desenrolaram do corpo de
Boland, exageradamente compridos. Depois, como a linha de um molinete de pesca,
os braços da garota se contraíram e voltaram ao comprimento de uma pessoa
normal.
Bem, mais nada pode me surpreender agora. Um
rapaz de seis braços, uma garota transmorfa, um rapaz cheio de alfinetes no
corpo, uma garota de braços extensíveis, e um rapaz com... com feições de
javali.
Com susto, acabei vendo a cabeça de Boland,
diante de meus olhos, se transformar, de uma cabeça humana, na cabeça de um
porco. Não, porco não: javali. Com presas e tudo! Mas a cabeça porcina não
ganhou pelos, porém ainda dava a entender que era um javali, e não um porco. De
todo modo, Boland era da minha altura, gorducho inclusive, a cabeça raspada,
mas sobrava um comprido rabo de cavalo, que caía sobre sua nuca como uma
cortina – por isso sua cabeça de javali não tinha pelos. E tinha uma grande
quantidade de pelos em seus braços.
- Pô, Macário, por que está me olhando
assim?! Oinc! – perguntou Boland, dando o ronco típico dos porcos.
- Você... você... você é um...
- Sim, Macário, um porco. – falou Aura.
- Porco não! Javali! – reclamou Gil. – Não
ofenda meu macho!
- Você se importa, Macário? – perguntou
Boland. – Eu posso ficar com a cabeça de homem se...
- Na... Não... Bo... Boland. Pode ficar
assim. – falei, tremendo.
- Legal. Valeu, dá trabalho ficar com a
cabeça de homem... Dá trabalho ficar com tudo de homem, aliás. Oinc... – e,
dizendo isso, transformou as próprias mãos em patas de porco, mas sempre
mantendo a postura humana. Nem dava para ver se suas pernas também se
transformaram em patas de javali, já que ele estava de calça comprida e tênis.
O garoto javali contrastava terrivelmente com
a namorada. Gil é, ou parece ser, humana. Uma garota bonita, e mais magra que
seu par, aliás, muito magra; loira (ao que tudo indica, natural), com o cabelo
cortado curto, parecido com o da Âmbar.
Só não era igual a esta porque seus seios eram pequenos. Seus braços eram
compridos e ligeiramente desproporcionais. E, ou eu estou enxergando mal, ou os
braços de Gil realmente tinham ventosas em sua extensão? Talvez seja só ilusão
de ótica, pois seus braços eram cheios de pintas.
- Oi, Macário. – Gil deu um sorriso. – Eu sou
a Gilvania. Gil para os íntimos. Lembra de nós, no bar?
- Não sei se lembra, Macário, é que ficamos
muito misturados à multidão. – falou Boland. – Mas nós aparecemos no bar. Oinc.
- Todos nós aparecemos. – falou Ringo.
- Hããã... pra... prazer em conhecer vocês...
melhor. – desengasguei. – Mas... mas que... que... que lugar é...
- Bem-vindo à sede dos Animais de Rua,
Macário. – falou Boland. – Bem, digamos que, hum... somos tipo que uma gangue.
Oinc.
- Não somos não, amor. Marginais não somos. –
falou Gil. – Somos é a banda mais irada do pedaço, isso sim.
- Todos nos veem como marginais.
Principalmente nas formas humanas. Oinc... – falou Boland, tristemente.
- O Luce e seus amigos não veem. E eu não nos
vejo como marginais, meu bem.
- Queria pensar assim como você, meu açúcar.
Mas a vida nos tratou de maneiras diferentes desde a infância... Oinc...
- Basta fazer um esforço, meu mel...
E começaram de novo a se beijar. Que loucura,
vou te contar: uma garota bonita beijando um javali, e ainda dirigindo-lhes
palavras carinhosas?! Tem gosto pra tudo neste mundo. Mas, pelo que entendi,
ambos tinham apenas um ao outro para se proteger do preconceito do mundo, então
não dá para censurar esse “amor”.
Mas aí Ringo interferiu.
- Ô, caras, agora não!!! Tem visita na sala!
– e tentou separar os dois.
- Ah, deixe, Ringo... – falou Aura. – Isso é
bonito de se ver...
- Desculpa aí, Macário. – falou Ringo, meio
sem jeito. – Esses dois literalmente não se desgrudam. Ô, Boland, tem visita
aqui, maneire aí.
- Ah, desculpe, Macário. – falou Boland,
desconcertado, depois que soltou um instante Gil. – É que eu não posso viver
longe dela. Oinc...
- E eu não posso viver longe dele – falou Gil.
– É que...
- Hã... acho que entendo. – falei.
- Vem, Macário. – falou Aura, me puxando pelo
braço em direção à cozinha. – Eu te apresento ao resto da galera. Vem.
Sem resistência, fui guindado.
Bem, o que mais iria me esperar? Mas já
estava decidido: se o que me esperasse fosse outra aberração, eu sairia
correndo dali na hora.
Não, espere aí, estou sendo radical. Eu teria
era que me acostumar com as “aberrações” de agora em diante. Se eles aceitavam
as bizarrices uns dos outros como coisas naturais, por que eu não podia? Aliás,
já começava a me perguntar se não foi Luce quem, na verdade, armou aquele
sequestro. Mas, viesse o que viesse dali para a frente, eu não podia ficar com
medo. Já tive o suficiente para um dia. Mais uma aberração não ia fazer mal
para mim. Além do quê, eram gente que me conhecia, e já estava na hora de eu
conhece-los melhor. Pelo menos havia uma pessoa que eu já conhecia bem, a Fifi,
para me deixar mais seguro. Oh, mas o Boland falou que havia mais uma das
“garotas do Luce” ali. Talvez fosse a Morgiana... ou quem sabe a Andrômeda que,
em vez de vir para a sua mansão, veio para este pardieiro.
Passamos pela porta da sala, por trás havia
um pequeno corredor de acesso aos outros cômodos. Era a única coisa que
separava a sala da cozinha, e da música que vinha dali.
A cozinha também estava fechada por uma
porta. Tínhamos de passar por duas portas, portanto. Aliás, todas as portas do
corredor estavam fechadas – haviam mais umas quatro portas, que deviam dar
acesso ao banheiro e aos quartos da casa.
Mas, antes de cruzarmos a segunda porta,
Pauley apareceu por uma das outras portas, a que dava acesso a um dos quartos
(acho).
- Oh, caras, a Fifi já vem. Ela ‘tá no
banheiro, e, pelo jeito, tá lidando com um “tijolo”, ah, ah... – falou Pauley,
rindo. – Ah, e o pessoal já ‘tava perdendo a paciência contigo, Ringo, que tu e
a Aura ‘tavam demorando...
- Ah, eles não podiam esperar um pouquinho
mais? Nós avisamos que íamos buscar o Macário.
- Mas a Mogi e o Beto ‘tão aqui, certo? Eles
que não podem esperar pelo teu solo de batera, cara.
- Bem, vamos entrar. – falou Aura, abrindo a
porta. – Importante é que ‘tá todo mundo aqui.
“Mogi”? “Beto”? Então quem estava ali devia
ser a Morgiana. Mas Beto... Beto... quem é Beto mesmo?...
Fui o primeiro a entrar, guindado por Aura.
Assim, tive o vislumbre do que me aguardava. Cada elemento do cômodo foi
captado aos poucos.
A cozinha também não tinha móveis. Digo...
tinha um armário e uma pia, e só. Em um canto, uma caixa de isopor à guisa de
geladeira. Não havia mesa nem cadeiras. Decerto, todos os ocupantes da casa
faziam as refeições nos cantos. Mas tinha luz elétrica.
O espaço da cozinha estava ocupado, na
realidade, pelo equipamento da tal banda. Uma bateria, um teclado, alguns
amplificadores, um microfone com pedestal, um equipamento de equalização de som
portátil. E havia gente, ali. Mais umas quatro ou cinco pessoas.
No canto do ensaio, estava um guitarrista e
um baixista, dedilhando seus instrumentos, tocando “qualquer coisa”. As outras
três pessoas estavam encostadas no canto, assistindo a apresentação
improvisada.
Mal consegui distinguir como eram essas
pessoas, quando ouvi um grito agudo, que fez a guitarra parar quase
imediatamente:
- Macááááárioooooo!!!
E fui surpreendido com um rosto conhecido:
era Morgiana, correndo me abraçar.
- Macário, meu brother!!! Que bom te ver!!! –
ouvi uma segunda voz familiar, masculina, e distingui o rosto e a cabeleira de
Beto Marley.
Aliás, cabeleira era modo de falar: ele já
não escondia mais que seus dreadlocks eram serpentes vivas, que balançavam
vigorosamente.
Fiquei desconcertado.
Morgiana, abraçada a mim, estava vestida como
uma roqueira, calça jeans escura e camiseta igualmente escura, que combinavam
muito bem com seu cabelo negro e liso, estava portanto integrada ao ambiente.
Beto Marley, por sua vez, não abria mão daquelas roupas surradas. Ele parecia mesmo
um cantor de reggae marginal. Mas, claro, não podia tirar os óculos escuros. Se
ele fosse mesmo o tipo de criatura que eu estava pensando, então tirar os
óculos seria muito arriscado para os presentes.
Então eles que são a “Mogi” e o “Beto”.
- Pô, Macário!!! Por que não disse que vinha
aqui?! – falou Morgiana, evidentemente muito feliz em me ver.
- Eu não vim aqui por vontade minha. – falei.
– Nem me convidaram. Me raptaram.
- Raptaram?! Como assim?!
- Ó, foi a Fifi quem mandou trazer o Macário
aqui. Disse que era pra falar com ele urgente. – falou Ringo, avermelhando.
- A Fifi que... ah, aquela vaca!!! –
esbravejou Morgiana, entre dentes. – Era só o que faltava!
- Vaca não. Pantera, na verdade. – falou
Ringo, entre risos.
- Está mais pra vaca, mesmo! – devolveu
Morgiana.
- Mas... mas... mas o que você está fazendo
aqui, Morgiana?! – perguntei.
- Nós viemos assistir ao ensaio dos Animais
de Rua. – falou Beto Marley. – Nós que estamos cuidando da gravação do primeiro
disco deles. Digo, na verdade quem está cuidando é o MC Claus, mas nós também
temos envolvimento. E, além disso...
- ...Além disso, o guitarrista da banda é meu
parente. – falou Morgiana, com entusiasmo. – Mas eles são muito bons, o
conjunto como um todo é talentoso, vale a pena escutar. Pena que são um tanto
avessos ao estrelato, pois olha só o ambiente em que estão ensaiando... – falou
Morgiana, com entusiasmo.
Realmente. Aquele ambiente não parecia ser
adequado para uma banda que estava sendo produzida pelo Duende Rei.
- Em quantos eles são? Os integrantes da
banda? – perguntei.
- Em cinco. – respondeu uma das outras
pessoas da sala.
Aí, é que reparei nas outras pessoas
presentes, vindo me cumprimentar. Uma era o que estava dedilhando a guitarra.
Era um punk legítimo. Cabelo moicano, jaqueta de couro, aparência truculenta. E
dentes afiados. É, era parente da Morgiana mesmo. Em que tipo de peixe ele
devia se transformar, se era em peixe que ele se transformava?
O que estava dedilhando o baixo tinha cabelo
espetado, brinco na orelha e uma língua enorme saindo de sua boca. Ele arfava
como um cachorro. Aliás, seu olhar era como o de um cachorro. Lembro dele, do
modo como ele assistia as partidas de sinuca lá no bar, sempre arfando como um
cachorro.
E, ladeando os dois, havia uma garota,
estonteantemente linda. Seu cabelo estava repartido em dois – metade pintada de
loiro, metade de preto. Era uma espécie de versão jovem, linda e bem-vestida da
Cruella de Vil, d’Os 101 Dálmatas. E estava enfiada em um
vestido curto e justo. Que avião!
- Oi, Macário! Como vai? – cumprimentou o
rapaz do moicano.
- E aí, Macário! Auf! – latiu o rapaz da
linguona.
- Beleza, Macário? – falou a garota, com voz
melíflua.
Fiquei desconcertado com a garota. Ela estava
perfumada, e...
- Macário, estes aqui são o Richard, o Fido e
a Eliane. – falou Morgiana.
- Hum... prazer em conhece-los melhor. –
falei. Procurei desviar meu foco da garota no rapaz do moicano. – Ri...
Richard...
- Pois não? – ele falou, sorrindo com um
sorriso terrível, com aquela boca que lembrava a de uma piranha.
- Vo... você que é o parente da Morgiana
aqui?
- Sou, sim. Primo. Você pelo jeito já é muito
amigo dela, né? E das irmãs dela, né?! Hein? Hein?
- Bem, eu...
- Primo, primo. – interferiu Morgiana. – Por
favor. Ele é muito meu amigo assim como é amigo de todo mundo aqui. Ele nos
serve drinques com amor e dedicação.
- Ara, mas eu sei que vocês dois... hein?
Hein? – Richard quis provocar a prima, passando os dedos indicadores um no
outro.
- Não se intrometa nas minhas intimidades,
primo. Assim como eu não me meto nas suas. – Morgiana devolveu com um muxoxo.
- Pô, prima, só para saber. Aliás, também sei
que o Macário passou a Fifi na cara. Foi ela mesma quem falou. Digo, não foi
neste plano de realidade, mas ela disse que o rapá aí é um garanhão. Hein?
Hein?
- Mas ela não parecia feliz. Nem um
pouquinho. – falou Fido.
- Aquela lá... hã... como é mesmo a
expressão... passa todo mundo na cara. É. Vaca em pele de pantera. Só porque
também é peituda. – falou Morgiana.
- Não fala mal da nossa líder, sua... –
intrometeu-se Gil.
- Pessoal, por favor, sem brigas. –
interferiu Aura. – Sem discussões.
- É bom mesmo. – falou Morgiana. – Lembrem-se
de quem está ajudando vocês financeiramente. Ficar tentando saber das
intimidades dos outros não vai ajudar no estrelato de vocês. Ou querem voltar
para as bibocas da redondeza para nunca mais sair? Hein? Pros barzinhos sujos e
sujeitos a batidas da polícia humana? Hein?
Todo mundo engoliu em seco. Morgiana sabia
como ameaçar gente.
- Ô, Morgiana, pegar pesado também não. –
falou Beto Marley.
- Eles também não fiquem pegando pesado
comigo. Já bastou a gente ter ajudado a maltratar o Macário. – falou Morgiana,
deixando cair uma lágrima. – ah, mas assim que a Fifi entrar nesta cozinha, eu
quero ter uma conversa com aquela pintora de rodapé... Ah, quero...
O clima estava ficando pesado. O descontrole
das emoções de Morgiana era ameaçador, eu ainda tinha em mente as vezes em que
ela gritava com Flávio Urso. Alguém tinha de fazer alguma coisa...
- Bom! – falei. – Então... vocês são uma
banda e ao mesmo tempo um grupo marginal?
- Já falei que não somos marginais, seu...! –
interferiu Gil.
- Hã... eu digo marginais, no bom sentido. Um
grupo que sobrevive à margem da sociedade... – procurei corrigir. – Não quis
dizer bandidos. Vocês não parecem bandidos.
- Somos. – falou Eliane. – Sigo, marginais,
no bom sentido, isso somos. Um grupo anarquista, é fato, que agora tenta vencer
como banda musical. Muita gente gosta.
- Bem, até agora só tivemos os clubinhos para
apresentar nossas músicas, essas boates que pagam mal. Auf! – disse Fido. – Mas
aí pintou a oportunidade...
- Estamos à margem da sociedade, é fato. E
sabe por quê? Oinc! – foi a vez de Boland falar.
- Claro que sei. – falei, agora mais à
vontade. – Por vocês serem... criaturas noturnas, como o Luce diz. “Monstros”.
E devo supor que é apenas entre os marginalizados que vocês encontraram
guarida... entre os humanos que usam piercing e ouvem punk rock... até o Luce
aparecer, não? O Luce, que está montando um grupo grande de criaturas
noturnas...
- Como sabe disso tudo? – pergunta Ringo.
- Bem, depois daquela noite... aquela em que
o Luce me levou para o galpão e vocês se mostraram como são... hum... eu...
hum... já me encontro mais antenado. – falei. Me surpreendi por estar
conseguindo aceitar a situação com mais naturalidade. – E... hum... mudando de
assunto. Vocês tocam o quê, exatamente?
- Como o quê? – falou Richard. – Rock, com
certeza!
- Hã... Punk rock?
- Também. – explicou Aura. – Mas também
estamos preparados para atender pedidos do público. Eles pedem uns estilos mais
leves, covers de bandas famosas, essas coisas. O que mais nos pedem é Guns n’
Roses, AC/DC, Nirvana... E, bem, a prima do Richard está se dispondo a ajudar a
produzir nosso primeiro disco de originais. Vamos propagar nossa mensagem em
breve.
- Sim! – foi a vez de Elaine falar – A
mensagem de uma vida sem domínio corporativo, sem drogas sintéticas, sem
entrega aos vícios... A utopia das esquerdas, sabe? Você, que faz faculdade,
deve saber do que estou falando. Você deve ter contato com o pessoal das
humanas que...
- Graças a Mogi aqui e ao Luce – interferiu
Richard, apontando para Morgiana – que permitiu que fizéssemos parte do círculo
dos “grandes”, mas só para podermos passar uma mensagem aos filhinhos de papai
que...
- Hã, tá, eu já entendi. – falei,
desconcertado. – E, bem, vocês... não vão tocar?
- Oh, claro, vamos, sim. Vamos mostrar nosso
som. – falou Richard. – Vamo tocá, turma? Já que o Macário ‘tá aí, vâmo mostrá
nossa sonzêra, aí quem sabe ele divulga p’ros amigos dele. Quem sabe depois
nóis não toquêmo’ na formatura dele.
- É sim, Macário. Vai, Macário, diz que nós
que vamos tocar na sua festa de formatura, ah, diz que sim... – pediu Eliane,
de um jeito sedutor.
- Hã... hum... eu vou pensar no caso. –
falei, meio abobalhado. Aquela garota também devia ser uma ninfa! – Mas preciso
ouvir vocês primeiro...
Atrás de mim, Morgiana olhava-nos com uma
expressão de ciúme. Tive um pressentimento ruim.
Sem mais delongas, os membros da banda
ocuparam seus lugares. Richard na guitarra, Fido no baixo, Aura no teclado,
Ringo na bateria, Eliane assumiu o microfone, dispensando o pedestal.
- E vocês? – perguntei aos que sobraram,
Boland, Gil, Pauley.
- Nós somos da “técnica”. – falou Pauley,
assumindo o equipamento de equalização. – Somos dos bastidores. A ação mesmo
fica com eles ali.
Beto Marley e Morgiana sorriram um para o
outro.
- E a Fifi?
- Ela é, tipo, a empresária. – falou Gil. –
Mas cadê ela, aliás?
- Não sei... oinc. – falou Boland.
- Que demora no banheiro. – falou Pauley. –
Ah, mas vamos começar assim mesmo. Ela que ouça do banheiro.
- Que seja. – falou Richard.
Ele cochichou alguma coisa com o pessoal dos
instrumentos e, a seguir, com o tradicional grito de “one, two, three”, em
inglês mesmo, a banda começou a tocar, soltando uma peça de rock feita para
detonar, mesmo.
Era aquele rock bem no estilo truculento.
Richard com a guitarra rasgando, Aura dedilhando o teclado como se estivesse
estapeando as costas de um inimigo, Ringo batendo com violência nos tambores e
nos pratos, Fido estabilizando todos os elementos com a marcação do baixo, e a
voz de Eliane, ao mesmo tempo suave, aguda e violenta, ecoando gritos de ordem
contra o “sistema”. Mas a “sonzeira” era bem articulada e agradável de ouvir.
Era punk rock, mas parecia um som feito especialmente para tocar na televisão,
uma canção “comercial”, para agradar aos empresários interessados. A ironia era
que a canção inicial criticava violentamente a mídia.
Finalizada a primeira música, o pessoal
aplaudiu. Eu também acabei aplaudindo, espontaneamente.
Empolgados com a aprovação dos três que
queriam impressionar – Morgiana, Beto e eu – eles emendaram uma segunda canção.
Começaram com um solo de baixo de Fido, para depois Richard entrar com tudo com
a guitarra.
Fiquei impressionado com a qualidade do som
dos Animais de Rua. Para uma banda de punk rock, era uma música, digamos
assim... difícil de explicar. Os caras eram ótimos. Richard mandava bem nos
solos de guitarra. Teve um momento em que Aura mandou um magnífico solo de
órgão, em seu teclado. E outro em que Ringo enlouqueceu com a bateria, mandando
um solo que era pura tempestade. Realmente, o cara podia passar por John Bonham
(meu pai tem todos os discos do Led Zeppelin em casa, até discos de rock ele
coleciona. Que sorte a minha ter um pai amante de cultura). O que ajudava a
acalmar essa verdadeira tempestade sonora era o baixo de Fido, que ajudava na
marcação dos instrumentos, no ritmo. E, como bom roqueiro, Fido tirava e
colocava a linguona da boca, fazendo caretas. A voz de Elaine ia da leveza das
notas musicais para a violência dos gritos agudos em poucos segundos, além de
fazer performances corporais.
Não guardei na mente as letras das músicas,
mas eram, basicamente, canções de protesto em tom poético e alegórico, fazendo
muito o estilo “sacudir a cabeça da sociedade”. Tematizando violência,
desigualdade social, exclusão dos que não faziam parte do “sistema”, influência
da mídia... sim, bem na base dos discursos que eu ouvia do pessoal das Ciências
Humanas da faculdade, muito preocupados com esse tipo de coisa.
Só foi preciso a segunda música para entrar
totalmente na deles. A partir da terceira, já estava envolvido com o som. Eles
se empolgaram, e começaram a emendar uma música na outra, sem intervalos, e
praticamente sem erros de compasso ou algo assim. Já devia fazer tempo que eles
ensaiavam, então já estavam muito acostumados.
Talvez valesse a pena perder mais um dia de
faculdade para...
Oh, não! Eu estava me esquecendo da
faculdade!
Resolvi aproveitar uma brecha, ali, pela
quinta canção, quando todos estavam praticamente hipnotizados – e a banda,
empolgada, não dava sinais de que ia parar com o show particular, emendando uma
canção na outra. Mas não se sabia a quem queriam agradar: se a mim, ou a
Morgiana e Beto. Praticamente, fui o único que conseguiu recuperar a lucidez:
Morgiana, Beto e os outros estavam praticamente fora de si, vibrando. Aquela
música devia ter algum elemento hipnotizante. Será que era a voz da Eliane?
Será esse o “poder” dela, o de encantar quem ouvisse sua música?
De todo modo, eu aproveitei e saí pela porta.
Vou dar um jeito de voltar para a faculdade a pé mesmo, acho que sei o caminho
para...
Mas tive azar.
Ao ganhar o corredor, acabei dando de cara
com... Fifi.
Ela usava uma combinação de roupas parecida
com a usada na exposição do Marto Galvoni. Calça Jeans, camiseta quadriculada.
E, desta vez, ela estava com as orelhinhas de gata de fora. E não parecia feliz
em me ver.
- Fifi!...
Mas aí, gradativamente, ela foi abrindo um
sorriso. E, por fim, me abraçou.
- Oh, Macário! Você, aqui!! Nyah!
- Fifi?!
- Ah, Macário, me desculpe se eu mandei os
caras te trazerem aqui à força, mas era mesmo para atrapalhar o Luce, que...
- Peraí! Mas como...
- Desculpe a demora, eu estava no banheiro. O
Pauley avisou, não?
- Sim, mas como...
- Passe aqui, no meu quarto, Macário. Temos
de conversar. Inclusive sobre o... você sabe.
Acho que sei, sim, sobre o que ela queria
conversar.
- Só queria que a Morgiana não tivesse vindo
aqui. Espero que o pessoal não resolva parar de tocar, ou ela vai vir me cobrar
explicações. Espero que dê tempo de a gente... Mas, diz aí, Macário, gostou da
banda? Os Animais de Rua são uma banda bem bacana, não acha? Nyah...
Eu não sabia o que dizer.
Só pensava que estava perdendo a faculdade de
novo...
Como eu estava me arrependendo daquele acordo
firmado com o Luce.
Próximo capítulo daqui a 15 dias, apesar de ser tempo de quaresma.
Até aqui, o que estão achando da leitura, passado mais de um ano do início da narrativa? Está bom? Ruim? Continuo? Paro?
Manifestem-se a respeito! Deem um feedback! Ou estarei escrevendo e fazendo ilustrações à toa?
Até mais!
Nenhum comentário:
Postar um comentário