domingo, 23 de julho de 2017

Filme: MEMÓRIAS PÓSTUMAS

Olá.
Na última postagem, eu resenhei novamente uma adaptação em HQ do clássico nacional literário Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. O “Bruxo do Cosme Velho”, nesse momento, já é o escritor mais adaptado para outras mídias além dos livros – a cada dia que passa, aumenta a quantidade de filmes, quadrinhos e livros infanto-juvenis adaptados de sua obra. E, em 2017, uma de suas maiores realizações pessoais em vida, a Academia Brasileira de Letras, que ele ajudou a fundar e presidiu, completou 120 anos de existência.
Bem: BRÁS CUBAS era tido, até o século XXI, como o livro mais “difícil” de adaptar do autor. Pois hoje eu vou falar da mídia que abriu caminho para as outras mídias “exumarem” o defunto autor e torna-lo palatável às novas gerações: o filme de 2001.
É, vou falar de filme brasileiro, sim, nesses dias em que os brasileiros descreem de suas instituições e de tudo o que diz respeito ao Brasil enquanto nação, incluso as artes.
Com vocês, MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS, o filme. Ou simplesmente, MEMÓRIAS PÓSTUMAS.


MEMÓRIAS PÓSTUMAS tem direção de André Klotzel, que também escreveu o roteiro (em parceria com o escritor José Roberto Torero, responsável pelos diálogos), produziu e fez a montagem. Com fotografia de Pedro Farkas, direção de arte de Adrian Cooper e trilha sonora de Mário Manga. Rodado no Brasil e com locações em Portugal, 101 minutos de duração, classificado dentro do gênero comédia dramática.
Na época do lançamento, o filme causou alguma comoção junto a público e crítica – foi altamente elogiado porque o diretor [realizou] um feito antes considerado improvável: adaptar o fragmentário romance de Machado de Assis, publicado em 1881, em que um defunto dirige-se ao leitor, a fim de narrar-lhe sua história. Com a liberdade que só a morte dá, Brás Cubas tece comentários irônicos sobre as intenções secretas por trás do comportamento humano. O filme apresenta soluções acertadas, como o fato de o Cubas defunto dirigir-se ao espectador, adaptando, portanto, a metalinguagem tão cara a Machado”. (Fabrício Flores Fernandes in: FERREIRA, Alexandre Maccari, KONRAD, Diorge Alceno, KOFF, Rogério Ferrer (org.) Uma História a Cada Filme – Ciclos de Cinema Histórico vol. 2. Santa Maria: FACOS – UFSM, 2007, p. 492).
Talvez nem seja para tanto, mas é verdade: depois da adaptação de Klotzel, adaptar BRÁS CUBAS para as mídias visuais parece fácil: podemos dizer que foi esse filme que possibilitou as três adaptações para os quadrinhos atualmente disponíveis no mercado. Lembremos, irmãos, que a primeira adaptação para HQ registrada pelo Guia dos Quadrinhos, o maior banco de dados das HQ nacionais, é de 2004: a adaptação de Maria Sônia Barbosa e Sebastião Seabra, para a editora Escala Educacional. E fica evidente que a HQ foi influenciada pelo filme de Klotzel.
E isso que, em verdade, a adaptação de Klotzel não foi a primeira da obra machadiana: BRÁS CUBAS já teve duas outras adaptações para cinema no século XX, uma indireta, usando o livro como base para uma história original (Viagem ao Fim do Mundo, 1967, direção de Fernando Cony Campos); e uma direta (Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1985, direção de Júlio Bressane). Dessas eu falo em outra oportunidade...
Bem. O filme estreou em 2001, altamente premiado: foi vencedor de cinco troféus Kikito do Festival de Cinema de Gramado daquele ano, nas categorias Melhor Filme Escolhido pelo Júri, Melhor Filme Escolhido pela Crítica, Melhor Direção, Melhor Roteiro e Melhor Atriz Coadjuvante, para Sônia Braga. E ainda obteve três indicações para o Grande Prêmio BR de Cinema, nas categorias Melhor Roteiro, Melhor Direção e Melhor Fotografia. Também já foi exibido em mostras internacionais de cinema, como a Mostra Oficial do Festival de Berlim.
E o diretor, André Klotzel, é cineasta experiente e premiado, considerado uma das grandes revelações do cinema nacional nos anos 1980. Em seu currículo, constam trabalhos de roteiro, direção, produção e montagem de dezenas de filmes, entre longas, médias e curta-metragens, documentários e séries de TV (incluindo assistência em filmes de Zé do Caixão). Considerando apenas os longa-metragens, seu primeiro filme, de quatro (incluindo MEMÓRIAS PÓSTUMAS), foi A Marvada Carne, de 1985, que ele também roteirizou – e que arrebatou vários prêmios no Festival de Gramado. Além desses, dirigiu Capitalismo Selvagem (1993) e Reflexões de um Liquidificador (2010). Bem, é o básico nesse momento.
Bão: MEMÓRIAS PÓSTUMAS segue fielmente o romance de Machado de Assis, embora tenha feito cortes em alguns trechos – quem já leu o romance ou as adaptações em HQ vai notar essas diferenças. Se detém apenas no principal, com o uso de alguns efeitos especiais, inserções de gravuras e imagens antigas do Rio de Janeiro do século XIX e algumas cenas de nudez não explícita. E a presença de atores célebres, antes e depois do filme (mas o filme não possui ligações com o Grupo Globo, frise-se: foi feito por uma produtora independente, a Superfilmes, com financiamento da Lei de Incentivo à Cultura).
Well. O espectador é guiado pelo próprio fantasma de Brás Cubas (Reginaldo Faria, que também interpreta Brás Cubas na velhice), que dirige-se a ele, explica trechos da trama, dá suas tiradas filosóficas e até interfere na trama quando necessário. Com isso, a metalinguagem do romance está garantida.
A história de Brás Cubas, típico membro da elite ociosa carioca do século XIX, começa pelo seu velório, o próprio Brás Cubas narrando seu velório. Depois retrocede ao momento em que o velho Brás Cubas se encontra em seu leito de morte, assistido por algumas pessoas, depois de falhar em sua última tentativa de alcançar a celebridade, o Emplastro anti-hipocondria, a “ideia fixa” que o perseguiu. Em seguida, fazendo uso de modestos recursos teatrais (cenários artificiais, truques de perspectiva, maquiagem, exibição de imagens no ar através de projeção em câmeras super-8, etc.), assistimos ao delírio de morte de Brás Cubas (a sua transformação em Suma Teológica, a cavalgada no hipopótamo, a conferência com Pandora), e daí vamos para sua infância.
Seu nascimento, sua infância irrequieta, e o episódio ocorrido aos 9 anos de idade (o Brás menino é interpretado por Alfredo Silva), quando se “vinga” do poeta Doutor Vilaça (Walmor Chagas), que retardou até não poder mais a sobremesa com suas glosas, ao flagrá-lo aos beijos com Dona Eusébia (Débora Duboc) e contar para todo mundo.
Klotzel faz Brás Cubas pular o período na escola e introduzir o personagem Quincas Borba bem mais tarde; vai direto à época em que o mancebo Brás Cubas (interpretado, dos 20 aos 60 anos, por Petrônio Gontijo) começa a cortejar a prostituta espanhola Marcela (Sônia Braga, a eterna Gabriela, em participação especial), despendendo uma grande soma em joias para cortejá-la. Até que o velho Bento Cubas, seu pai (Stepan Necessian) interrompe esse “romance”, e despacha Brás para estudar em Portugal, onde conclui os estudos de direito mediocremente. Depois, passa um tempo viajando pela Europa, até receber a notícia do adoecimento da mãe (Joana Schinitman), que morre pouco depois de seu retorno ao Rio de Janeiro. Em luto, Brás resolve se refugiar em uma propriedade da família na Tijuca, e lá reencontra Dona Eusébia, e vive um curto romance com sua filha Eugênia (Milena Toscano). O fato de a moça ser coxa (manca de uma perna) enche Brás de dúvidas (“por que coxa, se bonita? Por que bonita, se coxa?”). Até que o velho Bento Cubas, a fim de tirar o filho da ociosidade, anuncia que arranjara para ele um casamento e um cargo de deputado, o que faz Brás Cubas romper o romance com Eugênia e retornar à cidade.
Brás acaba conhecendo e se apaixonando, aos poucos, por Virgília (Viétia Rocha), com quem vive um romance oscilante pelo resto do filme. Embora veja sua afeição por Virgília ser correspondida, Brás acaba assistindo, desolado, o rival Lobo Neves (Otávio Müller) tirar-lhe tudo: Virgília e o cargo no governo. Isso não impede, no entanto, que Brás e Virgília se tornem amantes. Os dois passam a ter encontros secretos, intermediados pela velha Dona Plácida (Nilda Spencer) em uma casinha no subúrbio. Virgília chega a engravidar de Brás Cubas, mas perde o filho, o que deixa-o perturbado. Por um triz, Brás Cubas não se torna secretário de estado de Lobo Neves, quando este é nomeado para atuar no governo da província do Maranhão: o rival político recusa a nomeação por causa de superstições envolvendo o dia 13.
Enquanto isso, Brás Cubas tem um rápido reencontro com Marcela, agora envelhecida e tendo de cuidar de um bazar; e também reencontra o colega de escola, Quincas Borba (Marcos Caruso), reduzido à mendicância – e tem seu relógio roubado.
Mas, ao que parece, a vida de Brás Cubas, após a morte do pai, passa a ser vivida em função de seu romance não realizado com Virgília, que, por pouco, não é descoberto por Lobo Neves. Brás até cogita um noivado com Nhá Loló (Ana Abott) (e, aqui, ele faz uma reflexão pouco útil acerca da nudez e da utilidade das roupas), mas esse noivado acaba interrompido porque Nhá Loló morre de febre amarela.
É aí que Quincas Borba, agora abonado, volta à vida do Brás Cubas já quarentão, e expõe a filosofia do humanitismo. Quincas Borba, enquanto escreve os princípios de sua “religião da humanidade”, é quem incentiva Brás Cubas a buscar “novos desafios”, não ficar só vendo a vida passar. Desse modo, Brás Cubas se arrisca à carreira de senador, e não se sai bem; e, após a morte de Quincas Borba, Brás Cubas, já sessentão, se lança a tentar a celebridade através do emplastro: o filme fica um longo tempo nos devaneios de Brás Cubas, imaginando se nome impresso nas embalagens do Emplastro, e possíveis slogans, caso o produto atravesse o tempo. E aí, ele resolve abrir a janela, toma uma rajada de vento encanado, pega pneumonia... e o filme retorna à cena inicial.
Bem. O filme é mais bem sucedido na forma que no conteúdo: embora tenha sido feliz em adaptar a história de Brás Cubas, respeitando ao máximo o romance machadiano, tenha momentos de humor – aquele humor agridoce, judaico, de meio sorriso – e as interpretações dos atores sejam convincentes, o filme vai ficando muito “parado” depois de um tempo: a relação entre Brás e Virgília toma muito tempo e deixa o filme paralisado, bem como os devaneios ociosos de Brás. Trechos significativos do livro acabaram cortados, como a da briga dos dois cães, o episódio da mula empacada em Portugal, o reencontro de Brás Cubas com o ex-escravo Prudêncio e o período em que Brás editou um jornal. Mas mantiveram o trecho do dinheiro achado, da borboleta negra... e, embora acabe soando falso, o trecho do hipopótamo – pois dá para notar que o hipopótamo está sendo guindado através de um trilho atrás do cenário. O filme teve um orçamento modesto, mas a reconstituição dos figurinos e dos cenários da época foi muito acertada – e faz valer cada centavo gasto. Quanto ao retorno, se ao menos o filme conseguiu se pagar, não tenho como informar.
Bem, talvez o filme não seja de todo impressionante porque, mesmo entre os que ainda nunca leram a história de Brás Cubas, pesa o fato de o público já saber como a história termina – e o próprio personagem se encarrega de dar o “spoiler”. E quem já se arriscou a ler BRÁS CUBAS meio que já conhece a história de cabo a rabo, então, não há surpresas.
Quanto ao elenco, é bem possível que o ator que convenceu menos em seu papel foi Marcos Caruso, que nos entregou um Quincas Borba mais “amansado” que o “louquinho da praça” criado por Machado de Assis. Nota-se que ele não estava muito à vontade no papel...
E, desse modo, aqui está MEMÓRIAS PÓSTUMAS. Se não a melhor adaptação da obra de Machado de Assis para o cinema, uma das melhores que dispomos.
O website oficial do filme ainda está ativo, no momento em que escrevo, para quem quiser mais informações: www.memoriaspostumas.com.br/.
E, no momento em que escrevo, o filme, relativamente fácil de encontrar em DVD e no streaming, pode ser visto no YouTube. Tire um tempo para colocar um pouco de cultura na cabeça, não a superaqueça por causa do governo.
E, em outra oportunidade, voltaremos a falar sobre Machado de Assis. Isso é tudo.

PARA ENCERRAR...
...como tem sido para acompanhar as mídias referentes a séculos passados, aqui vão mais páginas de O Açougueiro, minha HQ folhetinesca, uma das muitas coisas que ando fazendo ao mesmo tempo. E ainda tenho de preparar mais tiras de Letícia, Bitifrendis e Teixeirão, e escrever mais um capítulo de Macário, e ler o próximo livro que pretendo resenhar, e preparar mais páginas de O Açougueiro, e atualizar minhas redes sociais, e...
Ah: as páginas de O Açougueiro agora podem ser vistas no meu Twitter, que há pouco tempo resolvi reativar. Vejam: www.twitter.com/rafaelgrasel. Também no meu Facebook.
Em breve, novidades, aguardem.

Até mais!

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