domingo, 21 de fevereiro de 2016

UNS BRAÇOS HQ ou: erotismo à moda do "século hipócrita"

Olá.
Hoje, dou continuidade à minha série sobre adaptações de obras da literatura para HQ – ou melhor, das adaptações da Editora Escala Educacional, ou, mais precisamente, da série Literatura Brasileira em Quadrinhos, a qual já apresentei na postagem anterior.
Meio que por ordem de lançamento, comecei falando sobre O Homem que Sabia Javanês, de Lima Barreto, por Jô Fevereiro; hoje, o álbum escolhido é UNS BRAÇOS, de Machado de Assis, por Francisco Vilachã.

SOBRE VILACHÃ
Antes de falar do álbum, melhor que eu fale, como costumo fazer, do responsável pela adaptação do conto do “Bruxo do Cosme Velho” para os quadrinhos. Afinal, Machado de Assis dispensa apresentações para que não fugiu das aulas de Literatura na escola, certo?
Francisco Vilachã nasceu no Rio de Janeiro, em 1953. Morou no subúrbio da ex-Capital Federal, e é fã de Lima Barreto, o que contribuiu para que fosse escalado, posteriormente, para fazer adaptações de suas obras para HQ.
Vilachã meio que “aprendeu a ler” com os quadrinhos. Ele cursou aulas de desenho publicitário no Senac, tendo por professor o quadrinhista Guidacci. Foi este quem apresentou o jovem Vilachã ao cartunista Fortuna, que editava, então, a revista O Bicho – e foi nessa revista, em 1976, que Vilachã publicou seu primeiro trabalho. Depois disso, Vilachã passou algum tempo na ilustração e nos trabalhos gráficos para jornais, já que viver de quadrinhos não era possível; em 1978, ele começou a colaborar para a revista Spektro, da editora Vecchi, a partir do número 6, desenhando histórias de terror de forma quase constante.
Mais tarde, ele começou a colaborar para a histórica editora Grafipar, escrevendo e desenhando histórias ao lado de feras como Flávio Colin, Watson Portela, Rodval Matias e Mozart Couto. Após o fechamento da Grafipar, desenhou histórias para as revistas da Press Editorial.
Por volta de 1983, Vilachã, junto com Ronaldo Antonelli, edita, pela editora Ondas, a revista Inter Quadrinhos. Nascida como um suplemento de quadrinhos da revista masculina Big Man Internacional, a Inter Quadrinhos, após o primeiro número, ganha vida própria, e a revista é publicada em duas séries: a primeira, com cinco números e edição de Antonelli e Vilachã, tinha 68 páginas em cada número e alternava entre páginas coloridas e preto-e-branco; a segunda série, com edição de Itagyba de Oliveira e Marcelo Verde, teve seis números, com menos páginas em cada número (36) e impressa em uma só cor (um número impresso em verde, um em vermelho, um em violeta, um em preto...). Além dos quadrinhos, ainda trazia textos informativos sobre o universo das Histórias em Quadrinhos, do Brasil e do Exterior. Na Inter Quadrinhos, 100% brasileira, mas alinhada às revistas estrangeiras com histórias “adultas” (com doses de erotismo, violência e humor negro altos para os gibis da época), colaboraram importantes artistas, como Watson Portela, Mozart Couto, Xalberto, Miguel Paiva, Mosquil, Cláudio Seto, Flávio Colin, Jô Fevereiro, Glauco Villas-Boas, os Deodato Borges, sênior e filho (este, o futuro Mike Deodato), Franco de Rosa... entre muitos outros. E, claro, o próprio Vilachã, que, em suas histórias, “brincava” com músicas da época e as inseria no contexto de seus desenhos – entre suas “vítimas”, esteve Lou Reed, As Frenéticas e Caetano Veloso. Nessa época, alguns de seus personagens eram notáveis pela androginia (confusão de sexo masculino com feminino). Atualmente, dá para encontrar scans de exemplares da Inter Quadrinhos para download.
Após o encerramento da Inter Quadrinhos e da linha de HQs da Press, Vilachã começou a trabalhar como freelancer para diversas publicações, como o jornal O São Paulo e a revista Alô Mundo.
Em 2004, afinal, retorna aos quadrinhos: ele começa a fazer as adaptações de obras literárias para a Escala Educacional. Solo, roteiro e desenhos, Vilachã produziu, para a primeira leva da série Literatura Brasileira em Quadrinhos: Uns Braços, O Enfermeiro, A Causa Secreta e O Alienista, de Machado de Assis, e Um Músico Extraordinário e A Nova Califórnia de Lima Barreto. Depois, passou para os romances “maiores”. Vilachã retomou a parceria com Ronaldo Antonelli – este escreveu os roteiros para as adaptações de O Cortiço, de Aluísio de Azevedo; Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto; A Polêmica e Outras Histórias, de Artur Azevedo; Inocência, de Visconde de Taunay; e Primórdios da Literatura Brasileira, condensando textos dos primeiros cronistas da história brasileira, como Pero Vaz de Caminha, Fernão Cardim e José de Anchieta.
Não ficou nisso: Vilachã e Antonelli produziram, para a série Literatura Mundial em Quadrinhos, também da Escala Educacional, o volume Contos de Tchekhóv, adaptando cinco contos do escritor russo.
Seus trabalhos mais recentes também são adaptações de obras literárias para HQ, lançadas na forma de e-book para Kindle: o conto Ideias de Canário, de Machado de Assis, e O Veterinário, de Maksim Gorki.
Conheça mais a respeito do trabalho de Vilachã no website oficial do autor: www.franciscovilacha.com.br.

O UNIVERSO MACHADIANO...
Well. Como eu disse, o universo de Machado de Assis (1839 – 1908) dispensa apresentações. O “Bruxo do Cosme Velho” é considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos, o maior nome do movimento literário do Realismo, que se opôs ao Romantismo, com suas histórias sem final feliz, sem idealizações do amor e do país, essencialmente urbanas e retratando, de forma às vezes cruel e abusando da ironia, a sociedade de seu tempo.
Isso outros importantes escritores também fizeram, claro, mas Machado de Assis fez mais... Afinal, ter, ainda no século XIX, ter colocado um morto para narrar sua própria história, em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), e ter criado a maior dúvida da literatura brasileira, até hoje não esclarecida, em Dom Casmurro (1899) – Capitu traiu ou não Bentinho com Escobar? – já é uma boa amostra da genialidade do mulato, primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, etc.
Bem, em minha humilde (e sujeita a discordâncias) opinião de blogueiro, os contos de Machado de Assis ainda são seu melhor material – mais digeríveis que os romances, por terem uma linguagem menos rebuscada, serem mais curtos e mais concisos, sem perder muito tempo com reflexões, etc... Enfim, os contos de Machado de Assis ainda são o melhor material introdutório ao universo do “Bruxo do Cosme Velho”, para depois tentar a “sorte” com os romances (chegando ao final de um romance de Machado de Assis já constitui um ganho enorme).
E, claro, Machado de Assis é o autor atualmente campeão em adaptações de seus textos para HQ. Vários autores, por várias editoras, adaptaram contos e romances de Machado de Assis para a linguagem gráfica, em muitos casos, mais de uma vez. Já falei aqui, por exemplo, da adaptação de O Alienista, feita pelos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá (mais ou menos na mesmo época, foram feitas outras três adaptações, por editoras diferentes). De outras adaptações de Machado de Assis para HQ, vou falando com o correr do tempo.
Hoje vou falar de UNS BRAÇOS. Até onde sabemos, a adaptação de Vilachã para a Escala Educacional é a única do conto, uma narrativa curta, rápida e que muitos classificam como uma história “erótica” de Machado de Assis.

O CONTO
UNS BRAÇOS foi publicado inicialmente em revista (não sei informar, nesse momento, em qual), e republicado na antologia de contos Várias Histórias (1896). A versão em HQ pela Escala Educacional foi lançada em 2004, junto com a adaptação de O Homem que Sabia Javanês. Ambos foram vendidos, em um só pacote, nas bancas. Atualmente, está disponível em livrarias ou no site da Escala Educacional.
Além da adaptação para HQ, UNS BRAÇOS também teve uma adaptação para o cinema – na forma de um curta-metragem brasileiro de 36 minutos, dirigido por Adolfo Rosenthal em 2009. Está disponível no YouTube, só procurar.
UNS BRAÇOS é classificado por alguns como uma história “erótica” de Machado de Assis, mas um erotismo apenas sugestivo, baseado apenas no desejo, sem nudez ou sexo – ao menos, não da forma como já nos acostumamos a pensar. Dentro dos padrões do século XIX, o “século hipócrita” segundo a historiadora Mary Del Priore; em que mulheres andavam totalmente cobertas, e beijo na boca, em público, era algo impensável para moços e moças “de bem”. E o objeto de desejo do personagem principal é uma parte do corpo feminino mais improvável, menos “erógena”.
Bem. UNS BRAÇOS, que se passa “na Rua da Lapa, em 1870”, trata da tensão sexual vivida pelo jovem Inácio, menino de 15 anos que, por indicação do pai, vai trabalhar como assistente do Solicitador Borges, um importante empregado do judiciário. Inácio está morando na casa do Solicitador, um homem rude cujo prazer é xingar o pobre empregado – Inácio é um tanto “avoado” e atrapalhado. O menino até mesmo participa das refeições ao lado do patrão e sua mulher, D. Severina – o único momento de intimidade entre os três. Inácio não gosta muito do trabalho, e só encontra prazer nessa vivência na hora das refeições: ele está atraído por D. Severina, que tem o hábito de usar vestidos sem mangas, deixando os braços nus. Esse pedaço de pele exposta é o maior motivo da admiração de Inácio por D. Severina, e ele praticamente só tem os braços da mulher de seu patrão na mente. Mas, claro, não pode dizer nada – e ainda tem de ouvir as descomposturas de Borges, por conta de seu alheamento, suas distrações e esquecimentos.
Por outro lado, D. Severina já desconfia que o garoto está, sim, atraído por ela – e ela, aos poucos, desperta uma atração por Inácio, o que a põe muito constrangida. Ainda mais porque o marido parece reparar em alguma coisa errada, já que todo mundo na casa, menos ele, está no “mundo da lua”.
Até que, em uma tarde de domingo, Inácio, sem muito a fazer, dorme em sua rede e sonha com D. Severina, naturalmente; e a mulher não consegue mais se conter: vai até o quarto do rapaz e o beija na boca durante o sono. Mas, enquanto Inácio toma o que aconteceu como um simples sonho, D. Severina, constrangida pela ousadia, acaba mudando seu jeito de ser, sem mais nem menos... E Inácio não pode mais ficar na casa do Solicitador, depois disso tudo.
Bão. Na adaptação para HQ, Vilachã fez uma adaptação integral e bastante básica. Sendo o conto curto, até o texto foi incluído, quase integralmente, à parte gráfica – os quadrinhos. Quase não há falas e balões, só os recordatórios com a “fala” do narrador. As imagens são, praticamente, apoio para o texto – e se pode perguntar: seria mesmo necessário tantos quadros para traduzir a tensão explícita no texto? UNS BRAÇOS HQ acaba sendo mais um storyboard para um filme do que uma HQ. Com menos quadros por página, talvez o resultado fosse melhor... Nem praticamente substituísse a versão original, em texto corrido, do livro Várias Histórias.
O forte do álbum acaba sendo, mesmo, a arte, com linhas mais cinzentas e cores difusas; a pesquisa de época feita por Vilachã, reproduzindo a ambientação do Rio de Janeiro de 1870; e a caracterização física dos personagens, com destaque para Inácio, com o olhar sempre vago, distante, a expressão quase o tempo todo monótona – e isso acaba, depois de algum tempo, chateando o leitor.
E, quem ver os outros álbuns desenhados por Vilachã, vai notar que os personagens masculinos, narigudos e de certa forma caricaturais, são muito parecidos entre si. Mais: Vilachã ainda escondeu, na história, um “avatar” de Machado de Assis, que o leitor pode procurar como uma atividade complementar.
Bem, são só 40 páginas de história, das 48 do álbum inteiro, né... As páginas restantes compõem-se da biografia de Machado de Assis e atividades de apoio para os estudantes (lembrem-se, a coleção Literatura Brasileira em Quadrinhos é destinada aos alunos do Ensino Fundamental).
Para gostar dos clássicos. Para entrar no universo de Machado de Assis de uma forma mais... pop.

PARA ENCERRAR...
...desenho, quadrinhos, por Rafael Grasel! Continuo, nesse momento, a série O Açougueiro, baseada nos Crimes da Rua do Arvoredo – Porto Alegre, 1863 – 64. Para esta ocasião, só consegui produzir, por hora, duas páginas. A história vai aparecendo à medida que vou produzindo – já devo ter dito isso várias vezes a vocês, não? Mas garanto que ainda há muita história pela frente. Mas será que está legal para o leitor?
Na próxima postagem: Um Músico Extraordinário, continuando a série.
E assim vamos seguindo.
Até mais!

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