terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

UM MÚSICO EXTRAORDINÁRIO HQ ou: a insustentável necessidade de ser

Olá.
Hoje, a minha série especial sobre a coleção Literatura Brasileira em Quadrinhos, da editora Escala Educacional, continua. Eu devo ter esquecido de advertir que não tenho todos os livros da série, mas vou falando de alguns títulos que consegui arranjar.
Continuando a falar da primeira leva dessa coleção, hoje vamos de UM MÚSICO EXTRAORDINÁRIO, de Lima Barreto, por Francisco Vilachã.

Nas postagens anteriores, já apresentei a coleção da Escala Educacional; na postagem anterior, já apresentei o artista Francisco Vilachã. Então, creio que esta postagem vai ser mais curta.
Até onde consegui apurar, os seis primeiros livros da série Literatura Brasileira em Quadrinhos foram vendidos nas bancas, em pacotes com dois, com uma adaptação de contos de Lima Barreto e uma de Machado de Assis. O segundo pacote teve UM MÚSICO EXTRAORDINÁRIO, de Lima Barreto, e O Enfermeiro, de Machado de Assis – ambos por Francisco Vilachã. Bem, vocês já devem ter me entendido.
UM MÚSICO EXTRAORDINÁRIO é um conto menos conhecido de Lima Barreto. Sempre que alguma editora resolve lançar coletâneas de contos selecionados do escritor carioca, é bem raro que esse conto acabe incluído. É garantido que nessas coletâneas selecionadas entrem contos como O Homem que Sabia Javanês, A Nova Califórnia, Miss Edith e Seu Tio ou mesmo a primeira versão, curta, de Clara dos Anjos (existe uma versão curta do conhecido romance). Mas UM MÚSICO EXTRAORDINÁRIO não; esse conto só se tornou mais conhecido, até onde consegui apurar, depois que Francisco Vilachã o adaptou para quadrinhos. Ao menos, a julgar pelas referências ao conto que examinei em pesquisa prévia na internet.
UM MÚSICO EXTRAORDINÁRIO foi extraído da coletânea de contos Histórias e Sonhos (1920), um dos livros menos “acessíveis” de Lima Barreto, ao menos na versão integral. A adaptação para a coleção Literatura Brasileira em Quadrinhos ficou a cargo de Vilachã, roteiro, desenhos e cores, com assistência de Fernando A. Rodrigues na colorização – o que, em princípio, já torna a arte deste álbum diferente do trabalho do álbum anterior de Vilachã, Uns Braços.
O conto lida com um dos temas preferenciais da obra de Lima Barreto, o vazio da burguesia medíocre de seu tempo – o início do século XX. A época da República Velha brasileira (1889 – 1930) foi considerada a menos interessante em vários aspectos, com as disputas de poder entre diferentes tendências políticas, a concentração de poderio econômico nas mãos, principalmente, dos grandes cafeicultores, e, cinicamente, o desenvolvimento do Brasil era deixado de lado, em nome da manutenção de um status quo do qual poucos, evidentemente, se beneficiavam.
Bem. UM MÚSICO EXTRAORDINÁRIO é dividido em duas partes, mostrando, dessa maneira, a transformação de um personagem, sob os olhos de Mascarenhas, o narrador. Ao reencontrar um velho amigo, Ezequiel, Mascarenhas nota o quanto ele mudou, da pré-adolescência à vida adulta.
O conto inicia com as recordações de Mascarenhas nos tempos do colégio, quando estudava em um internato: ele se recorda de Ezequiel como um menino tímido, de pouca conversa, que gostava de ler livros de Júlio Verne e, de certa forma, era diferente dos outros meninos, mais interessados em brincadeiras e em garotas do que em estudar. Mascarenhas e Ezequiel ficam anos sem se ver, depois de sair do colégio.
A segunda parte do conto se passa em um bonde, o transporte público daquela época. Mascarenhas pega o bonde para o bairro do Botafogo, o reduto dos novos ricos cariocas, para visitar um amigo; no caminho, ele assiste uma discussão entre o cobrador e um passageiro, que se recusa a pagar a passagem por se dizer um artista, acima dos demais naquela condução, etc. E Mascarenhas, com uma pequena ajudinha, reconhece o passageiro falastrão: era Ezequiel. O narrador paga a passagem de Ezequiel, e, a seguir, os dois começam a conversar.
Na conversa, Ezequiel narra sua história: depois de deixar a faculdade de Direito, passou anos buscando uma ocupação, mas sempre ligado às artes e à cultura, como uma maneira de buscar um “algo mais” para sua vida, uma forma de viver diferente da mediocridade da classe média urbana, sempre almejando a segurança do serviço público, nos cargos próximos ao Governo. Tentou estudar belas-artes, mas não ficou satisfeito com as aulas; tentou ser jornalista, dramaturgo, etc.; até mesmo fundou uma revista, mas as coisas que publicava eram diferentes de sua proposta literária. Quando já estava decidido a não ser nada na vida, recebe uma vultosa herança de um parente que não via há tempos; e, quando estava a caminho da Europa, descobre, durante uma tempestade que se abatia sobre seu navio, um “talento”: o de músico, sem entender nada de música, apenas dedilhando um piano a esmo, mas “descobrindo” uma nova sonoridade, baseada na fúria da natureza. Mas, ainda assim, Ezequiel não se sente totalmente realizado. Seria esse talento um tanto “à frente” de seu tempo? O leitor só pode imaginar, a partir das descrições, como seria esse tal talento musical de Ezequiel, decerto tão inovador a ponto de não se enquadrar nos conservatórios musicais europeus, em sua época (anos 1910 – 1920)...
Teria sido Ezequiel o “pai” do rock n’ roll? Bem, pelo menos é o que eu imagino, a partir da descrição do conto...
UM MÚSICO EXTRAORDINÁRIO abre uma série de questionamentos ao leitor, sobre o vazio da existência, sobre como as pessoas mudam, sobre como elas podem desperdiçar seus talentos naturais e sacrificar gostos pessoais de forma inútil, sobre os supostos “privilégios” de artistas... enfim.
O álbum da Escala Educacional faz, assim como os volumes anteriores, uma adaptação literal do conto. Como UM MÚSICO EXTRAORDINÁRIO é um conto curto, para caber nas 40 páginas de história – das 48 páginas que o álbum tem no total, sem contar capa – Vilachã abusou de desenhos grandes, alguns de página inteira, e, em alguns momentos inclui quadros com desenhos e cenas desnecessárias ao desenvolvimento da narrativa, onde aparecem só cenários ou “passantes” sem relação com a trama. Esses quadros cumprem a função apenas de encher espaço nas páginas, para assim o layout ficar da forma que o desenhista acha que fica mais adequado ao ritmo exigido pela trama; importa mesmo os quadros com a narrativa. E, como o conto tem diálogos, também tem mais balões de fala, menos perda de tempo com reflexões mentais que demandam mais maneiras de traduzi-las em desenhos.
A arte de UM MÚSICO EXTRAORDINÁRIO é sensivelmente diferente da de Uns Braços: Vilachã e Machado investiram em cores chapadas e contornos pretos mais finos, que conferiram mais luminosidade ao conto – mas com alguma perda de qualidade no traço. E, além da tradução para HQ de trechos citados das obras de Júlio Verne, Vilachã acerta em incluir, na história, um “avatar” de Lima Barreto, a ser encontrado pelo leitor.
Ao menos, UM MÚSICO EXTRAORDINÁRIO serve como uma lição, a futuros artistas, de como fazer uma adaptação de uma narrativa curta para a linguagem gráfica. Ainda mais de um conto de leitura bastante rápida, como foi UM MÚSICO EXTRAORDINÁRIO.
O álbum ainda inclui seis páginas com a biografia de Lima Barreto e atividades de fixação, destinadas aos alunos do Ensino Fundamental. Por isso, UM MÚSICO EXTRAORDINÁRIO é mais fácil de encontrar em bibliotecas, notadamente escolares. Ou no site da editora – www.escalaeducacional.com.br.
Não disse que seria rápido?
Para encerrar, mais páginas de minha mais nova investida artística, a HQ folhetinesca O Açougueiro (nome provisório). Admito, a narrativa ainda não está engrenando como deveria para uma história do gênero policial (se é que é uma história policial o que estou de fato tentando fazer...), mas pretendo resolver isso em breve, podem confiar.
Na próxima postagem: O Enfermeiro, de Machado de Assis, dando continuidade à coleção.

Até mais!

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