segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A CARTOMANTE HQ ou: as cartas sim, podem mentir

Olá.
Enquanto escrevo, é o dia 29 de fevereiro, um dia que só se curte uma vez a cada quatro anos. E só uma vez, a cada quatro anos, que se lê em blogs postagens com essa data – isso quando os blogueiros resolvem escrever e publicar em um dia 29 de fevereiro. Datas assim não deveriam escapar de nossas atenções.
Para hoje, não planejei algo muito especial. Porque hoje, continuarei falando da série Literatura Brasileira em Quadrinhos, da editora Escala Educacional. De ter falado de um por um, dos primeiros livros já lançados da coleção, nem preciso me dar ao trabalho de apresentar os autores dos textos originais, os responsáveis pelas adaptações, etc...
Para variar um pouco, vamos falar de Machado de Assis. E, para variar ainda mais, vamos falar de Jô Fevereiro. Vamos falar da adaptação para quadrinhos de A CARTOMANTE, um dos contos mais lembrados do “Bruxo do Cosme Velho”.

A CARTOMANTE foi publicado inicialmente em periódicos. Como foi com Uns Braços, O Enfermeiro e A Causa secreta, integrantes da série Literatura Brasileira em Quadrinhos, o conto foi compilado na coletânea Várias Histórias, de 1896.
A adaptação para HQ feita por Jô Fevereiro – roteiro, desenho, arte-final e cor – com assistência na colorização de Ciça Sperl, foi lançada em 2005. Chegou a ser vendida em bancas, no pacote que também incluiu A Nova Califórnia, de Lima Barreto, por Francisco Vilachã.
E não é a única adaptação do conto disponível no mercado! Em 2008, foi lançada, em comemoração ao centenário do falecimento de Machado de Assis, uma nova adaptação para quadrinhos de A CARTOMANTE, por Flávio Pessoa e Maurício O. Dias, pela editora Jorge Zahar.
Em outras mídias, A CARTOMANTE comprova sua força como uma das melhores narrativas curtas de Machado de Assis: foram feitas duas adaptações para o cinema. A primeira é de 1974, dirigida por Marcos Faria, e a segunda é de 2004, dirigida por Wagner de Assis e Pablo Uranga. E, em 2014, o conto é adaptado em forma de ópera, dirigida por Jorge Antunes.
Bem. A CARTOMANTE, narrado em terceira pessoa e em narrativa não-linear, versa sobre um triângulo amoroso, um adultério e suas trágicas consequências em um tempo em que honra ainda se lavava livremente "com sangue".
Passado no ano de 1869, no Rio de Janeiro, o conto começa com um diálogo entre dois amantes, Camilo e Rita. O primeiro está repreendendo a bela moça por ela ter visitado uma cartomante, para saber sobre um assunto que diz respeito a ambos. Camilo há muito deixara as superstições de lado, por isso não consegue conceber a ideia da amada recorrendo a uma suposta leitora de sorte para saber o destino de sua paixão.
Só depois da parte introdutória é que Machado de Assis nos explica o que de fato está acontecendo, contando o passado dos três personagens principais, Camilo, Rita e Vilela. Camilo é funcionário público; Vilela, seu amigo de infância, é magistrado formado em Coimbra. E Rita é a esposa de Vilela. Apesar de ser mais velha que o marido, o porte grave de Vilela faz parecer ser mais velho, enquanto Camilo, mais bem-humorado, parece mais jovem que os dois. Os três se tornam muito próximos, muito amigos, mais ainda após a morte da mãe de Camilo, quando os amigos vem em seu auxílio – Vilela na parte da lei, Rita na parte do coração. Até que Camilo descobre que Rita gosta dele, quando, no aniversário daquele, a moça entrega um bilhete de declaração. E, pouco tempo depois, por insistência de Rita, Camilo apaixona-se e se torna seu amante. Essa relação, claro, é escondida de Vilela – Camilo faz de tudo para aparentar apenas amizade com o casal.
Até que Camilo, um dia, recebe uma carta anônima dizendo que seu caso com Rita é sabido de várias pessoas, que ameaçam contar a Vilela tudo o que sabem. Como, para não levantar suspeitas, Camilo começa a rarear as visitas ao casal, Rita desconfia que Camilo não a ama mais – por isso, recorre a cartomante para tirar essa dúvida, e essa assegura que, felizmente, o sentimento de Camilo por ela não mudou. E, como Rita também anda recebendo as tais cartas, os temores são maiores de que Vilela sabe, sim, do adultério.
Certo dia, Camilo recebe um bilhete de Vilela para que venha depressa à sua casa. Camilo vai, mas cheio de temores, em princípio, depois tranquilo, acreditando que o motivo do chamado não é nada de mais. Até que um acidente em uma rua barra a passagem do tílburi (charrete) que ele pegara para ir à casa do amigo. E bem na rua onde, segundo Rita, morava a cartomante. Camilo sente, nesse momento, aflorar as superstições que havia deixado na idade adulta. Cheio de curiosidade e dúvidas, o moço resolve descer do tílburi um instante e visitar a cartomante. E a mulher, uma italiana de meia-idade, carregando mistério e ambiguidade em todos os seus gestos, o recebe, joga-lhes as cartas e vê seu possível futuro. Camilo acaba ficando mais tranquilo em ouvir que Vilela não sabe de nada, e que, no fim, ficaria junto de Rita. E paga bem à cartomante, antes de ir embora e ir tranquilo à casa de Vilela. Mas, infelizmente, a previsão da cartomante falha em um ponto: Vilela sabia, sim. E o desfecho é trágico, e rápido.
Bem. Na sua adaptação de A CARTOMANTE, Jô Fevereiro faz a adaptação literal e básica do conto. E o conto tem poucos diálogos, e mais voz do narrador, ainda que isso não seja um impeditivo para uma adaptação para HQ. O desafio maior foi traduzir em imagens os trechos mais reflexivos e metafóricos do conto, mas Fevereiro conseguiu, integrando trechos mais “fantásticos” com os realistas, traduzindo, desse modo, os pensamentos do autor, e sua proposta.
O quadrinhista, desta vez, resolveu fazer uso de uma arte mais realista e menos caricatural que em sua adaptação de O Homem que Sabia Javanês, sem abrir mão da pesquisa de época, visto que até o ano em que a trama se passa foi pré-determinado pelo próprio Machado de Assis; as cores de Fevereiro e Sperl, em tons “desbotados” com prevalência do cinzento, são chapadas, mas de certo modo combinando com o clima machadiano do conto.
Fevereiro também faz muitas variações de “câmera”, alternando planos distantes com closes, panorâmicas com vistas de cima... Dentro da cartilha das HQ de Will Eisner. Na parte da quadrinização, Fevereiro optou por dispor os quadros no modo “fumetti” (HQ italiana), com os quadros rigidamente retos, as cenas dentro dos quadros, sem maior dinamismo, sem sangrias, e sem textos “acavalados” sobre quadros, sem a diagramação confusa, como a promovida por Francisco Vilachã nas suas adaptações para a Escala Educacional. Dá para notar que Jô Fevereiro pensou no leitor, e se preocupou em fazer sua adaptação de A CARTOMANTE mais arejada, mais agradável de ler e admirar os desenhos.
Há gente que se pergunta, ao ler o conto, qual o real papel da cartomante do título, e o significado dos gestos que ela adota, desde a leitura das cartas até a degustação de um cacho de passas de uva diante do cliente. É algo que está aberto a discussões – e a HQ reforça essa discussão através das imagens.
Talvez o maior pecado da adaptação seja a resolução do final, que está sujeito a polêmicas: alguns podem achar que a forma como Fevereiro resolveu a última página utilizou de um recurso inteligente de cinema; outros podem não gostar, já que faltou impacto para traduzir o final trágico.
Como os outros livros da série, A CARTOMANTE também inclui, em suas 48 páginas sem contar capa, biografia de Machado de Assis e páginas com atividades complementares aos alunos do Ensino Fundamental. Estamos em dias de retorno às aulas, no momento em que escrevo, então, vem a calhar.
Imperdível, é o que podemos dizer sobre A CARTOMANTE por Jô Fevereiro. Se tiver a oportunidade um dia, talvez compare com a adaptação de Pessoa e Dias pela Jorge Zahar, uma vez que consiga lê-la.
Nas livrarias, ou pelo site www.escalaeducacional.com.br.
Para encerrar, deixo nesse momento mais páginas de minha HQ folhetinesca, O Açougueiro. E é tudo o que posso dizer, não vou ficar tentando me explicar ou lamentar que a história está andando em um ritmo lento, acho que vocês já sabem... Bem, mas desta vez, se não carreguei em violência no episódio de hoje, acho que consegui carregar em sexo, mais ou menos como David Coimbra tratou do tema semelhante no romance Canibais. Quem sabe atraia mais leitores à nossa proposta...
Na próxima postagem... bem, infelizmente, não tenho os livros do hipotético quarto pacote de títulos da Escala Educacional – Miss Edith e Seu Tio e A Causa Secreta – então não vai dar para falar desses, ao menos agora. Tenho outros títulos da série Literatura Brasileira em Quadrinhos em casa, mas ainda vou decidir qual será o próximo. Só posso pedir que os meus 17 leitores tenham paciência e aguardem.

Até mais!

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