terça-feira, 1 de abril de 2014

Livro: MENINOS SEM PÁTRIA - o mais longo 1o de abril da História!

Olá.
Hoje, 1º de abril de 2014, Dia da Mentira, é também o Dia do Golpe. Hoje, o Golpe Militar, que instaurou a Ditadura Militar Brasileira que durou de 1964 a 1985, completa 50 anos. Nesse dia, as forças ligadas às Forças Armadas e à oposição ao governo de João Goulart depuseram o presidente e conseguiram convencer a população que estavam salvando o país de um “perigo vermelho”, um suposto complô dos comunistas para tomar o poder.



Só mais tarde os brasileiros conseguiram, apesar da censura imposta aos meios de comunicação, perceber o embuste. O crescimento econômico do Brasil foi grande, mas a grande parcela da população não pôde aproveitar – o ministro da Fazenda Delfim Netto disse que “era preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”. Mas o “bolo” murchou, por conta da inflação galopante, antes da divisão. Resultado: agravamento do abismo social entre ricos e pobres. E, enquanto isso, o governo gastava com obras faraônicas, propaganda do país... era o tempo do “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Quem se atrevesse a criticar o governo, ou lutar contra o estado de coisas, corria o risco de ser preso, torturado e morto. A menos que desse um jeito de fugir do país.
Essa história todo mundo já conhece, quem estuda História sabe, quem não ignora as aulas de História sabe do que estou falando. Pior que ainda hoje me deparo com gente que defende a Ditadura Militar, sem conhecer a verdadeira história. Dizem que "se não fossem os militares, o Brasil teria se tornado Cuba". Será que era isso mesmo que Goulart queria fazer? Não que eu apoie a ditadura cubana de Fidel Castro (sei que, apesar dos avanços sociais, a situação lá não é das melhores), mas... Dizem ainda que a Ditadura era menos corrupta que o Brasil de hoje. Será? Mas será porque as informações sobre casos de corrupção no Governo Militar... não vinham à tona por causa da censura à imprensa?
Bem. Eu que sou professor de História, posso afirmar categoricamente que a Ditadura Militar só legou ao Brasil de hoje duas coisas úteis: a Usina de Itaipu e a Ponte Rio-Niterói. Se houver outra coisa útil que o Regime Militar legou, podem me dizer nos comentários – e, de preferência, com provas convincentes.
Bão, chega de ficar divagando sobre aquilo que todo brasileiro bem-informado sabe. Hoje vou é falar de livro. Um romance infanto-juvenil que tem muito a ver com os eventos “homenageados” neste dia.
Hoje vou falar de MENINOS SEM PÁTRIA, de Luiz Puntel.

O AUTOR
Antes vou falar um pouco do autor.
Luiz Puntel nasceu em Guaxupé, Minas Gerais, em 1949. Passou a infância em São José do Rio Preto, São Paulo, e hoje reside em Ribeirão Preto, SP. Escritor premiado e reconhecido também por suas atividades como professor (ele é formado em Letras), Puntel atualmente dirige, na cidade onde vive, a Oficina Literária Puntel, onde ministra aulas de Português, Literatura e Comunicação para alunos de todas as idades. Conheçam o trabalho dele pelo site www.puntel.com.br.
Seu primeiro livro foi publicado em 1978 – Não Aguento Mais Esse Regime, coletânea de contos, pela editora Ática. Puntel foi, e ainda é, um dos escritores que mais publicou títulos na histórica série Vaga-Lume, da Editora Ática. Por essa série, ele publicou: Deus me Livre!, Açúcar Amargo, Um Leão em Família, Meninos sem Pátria, Tráfico de Anjos, Missão no Oriente e O Grito do Hip Hop. Fora da Editora Ática, Puntel ainda publicou os livros Carrasco de Goleiros e Um Soco no Estômago, além de livros didáticos e contos inclusos em coletâneas.
A obra de Puntel é caracterizada pela linguagem simples, acessível aos leitores jovens, e por escrever preferencialmente sobre temas da atualidade, com crítica social e um pouco de humor.

O LIVRO
MENINOS SEM PÁTRIA, publicado pela primeira vez em 1988, ainda faz parte do catálogo da Série Vaga-Lume – e com capa e ilustrações de Jayme Leão, falecido em março deste ano. Leão ficou conhecido como o ilustrador “oficial” da série de livros Léo e Seus Amigos, de Marcos Rey, pela mesma Série Vaga-Lume.
MENINOS SEM PÁTRIA tem por pano de fundo o período da Ditadura Militar Brasileira, e trata do drama dos filhos dos exilados pelo Regime – ou seja, opositores do Governo Militar que preferiram “deixar” o Brasil a “amá-lo”. Por temerem represálias do Governo Militar e de forças ligadas a ele, muita gente precisou fugir do Brasil, indo se refugiar em outros países (os casos mais famosos são de Luís Carlos Prestes, Fernando Gabeira, Chico Buarque e Leonel Brizola), alguns conseguindo levar a família. Os filhos dos exilados nascidos no Brasil passaram a viver sob culturas diferentes das de seus países de origem, e, quando afinal puderam retornar à sua pátria, a partir de 1979, ano da aprovação da Lei da Anistia, vieram com sensação de estranhamento – desaprenderam a falar português do Brasil e praticamente desconheciam aspectos da Brasil. Claro que não é um drama exclusivo do Brasil, muitos países que viveram sob Ditaduras ou guerras tiveram drama parecido. Mas, neste caso, estamos falando dos brasileiros.
Com algumas liberdades ficcionais, Puntel oferece um relato próximo do verídico da vivência de uma família que precisou fugir do Brasil e correr meio mundo em busca de tranquilidade durante os conturbados anos 60 e 70. O personagem principal do livro, Marcão, que narra sua trajetória em primeira pessoa, poderia ter sido uma pessoa real, tal a habilidade como Puntel narra a história. E, de brinde, o leitor ainda ganha, de forma subliminar, uma aulinha de francês.
Na introdução, Puntel conta que a inspiração para escrever o romance veio das aulas de português que ministrou em um colégio de Ribeirão Preto, quando conheceu um aluno que veio refugiado de Angola. O drama desse aluno, longe de seu país e de sua cultura, e tendo de viver sob a cultura de outros, foi a inspiração, bem como relatos de outras crianças que recém retornavam ao Brasil, vindas de Portugal França, Argélia, Inglaterra... E que vinham falando outras línguas.
Très bien. O romance.
Marcos, ou Marcão, era filho de Zé Maria, um jornalista crítico do governo militar, e de Terezinha, a Tererê, uma dona-de-casa. Ele tinha um irmão, Ricardo, ou Rico, e ganhou mais dois irmãos no decorrer da trama, Pablo e Nicole. Mas vamos por partes.
A história começa por volta de 1970, durante o governo do presidente Emílio Médici, o mais repressor do Regime Militar. A duras penas, Zé Maria, que morava com a família em Canaviápolis, dirigia um jornal de oposição, O Binóculo, que no início da trama é depredado por governistas, por conta de algumas notícias que não podiam ser publicadas. Marcão contava dez anos na ocasião, mas já entendia muita coisa das conversas dos pais. Tererê, a maior apoiadora da atividade do marido, está grávida novamente, e vive sendo tratada pelo marido como se estivesse doente – algo que a própria reclama bastante. Rico, o irmão mais novo de Marcão, ainda era um menino ingênuo e brincalhão, mas no decorrer da trama também acaba amadurecendo, ao seu modo. Ah: vale dizer que a família vive numa perfeita harmonia, apesar das intempéries – o pai, sempre disposto a dar conselhos aos filhos, a mãe superprotetora e os irmãos unidos. Talvez o grande problema de Marcão foi ter tido de amadurecer cedo demais.
Primeiro, foi a depredação do jornal do pai. Depois, uma série de telefonemas intimidadores, dirigidos ao pai, que Marcos atende. A família sob vigilância. Enquanto isso, Marcos tentava prosseguir com as brincadeiras infantis, as partidas de futebol na rua e as de botão com Rico. E o síndico do prédio onde a família morava, amigo da família, costumava passar, em código, sinais que a família corria riscos. Algo comum tanto para governistas quanto para opositores.
Até que, no momento em que a família percebe que a casa está cercada, Zé Maria toma uma atitude desesperada: sequestra um entregador de gás que estava visitando o prédio e foge, disfarçado como o tal entregador, em um caminhão de gás, antes de uma batida policial.
A família só recebe notícias de Zé Maria dias depois, quando uma freira disfarçada de faxineira leva Tererê, Marcão e Rico para se refugiarem em um convento. Depois de alguns dias, a família pega um ônibus para Corumbá, Mato Grosso, depois para a Bolívia, e de lá, de avião, vão encontrar Zé Maria em Santiago, no Chile – então vivendo a experiência socialista do presidente Salvador Allende. Começava aí a vida de Marcão como exilado. A sua maior dor foi ter saído do Brasil sem poder se despedir de Ana Rosa, uma menina de quem gostava, e estava quase namorando.
No Chile, Zé Maria trabalha como jornalista, e nasce o terceiro filho da família, Pablo. Entretanto, as coisas começam a ficar pretas: em 1973, acontece o golpe militar no Chile, quando começa o sanguinário governo do general Augusto Pinochet. E a família, ligada à oposição do novo Regime Militar, é mais uma vez visada. Zé Maria some de novo, e a família recebe a desagradável visita dos carabineros do governo chileno em sua casa.
Em um episódio emocionante, a família consegue se refugiar na embaixada da França – Marcão quase leva um tiro na fuga em direção ao prédio onde ficariam seguros da perseguição do governo. E lá, encontram Zé Maria novamente. Mas o episódio deixa Marcão traumatizado, com fobia de policiais fardados.
Foi um sofrimento, o refúgio da família, com várias outras pessoas, na embaixada francesa, até a liberação dos vistos de saída. Mas, assim que os vistos saem, a família está em fuga novamente: vão para a França, com uma breve escala no Brasil. E, na França, finalmente a família tem um pouco de paz. Ou quase.
Poucos dias após a chegada, a família vai assistir a um desfile de 14 de julho – o feriado nacional francês, e já começa o drama da adaptação ao idioma e à cultura francesas. Não é algo novo, visto que passaram pela mesma experiência no Chile, mas é mais difícil se adaptar ao francês que ao espanhol. E nisso o leitor ganha, porque os diálogos entre os personagens misturam frases em francês e português, o que já garante a aulinha de francês.
A família se estabelece num bairro do subúrbio de Paris. Zé Maria consegue um emprego de repórter frila (freelancer) no jornal Le Monde, onde continua a escrever notícias críticas ao governo brasileiro. E Marcão e Rico entram para um colégio francês – felizmente, eles não são os únicos brasileiros do colégio. É no colégio que Marcão conhece seu melhor amigo, Pierre, um francesinho sardento a princípio brincalhão, mas que mais tarde se torna um grande parceiro durante o exílio.
Mais ainda: Marcão conhece o amor. Uma francesinha, chamada Claire, que se apaixona pelo “brèsilien”, como Marcão fica conhecido. Filha de uma costureira e de um soldado desaparecido da Legião Estrangeira na Argélia, Claire chega a por em cheque o relacionamento com Marcão, mas sempre demonstrando estar apaixonada.
Na França, nasce a irmã de Marcão, Nicole. E, mais uma vez, o pai acaba sendo perseguido por agentes disfarçados na França, por publicar algumas “críticas” ao governo Médici no Le Monde. Mas o pior, felizmente, não acontece. Por pouco, a família não precisa fugir outra vez.
Foi no momento em que Nicole nasceu que Claire coloca em cheque sua relação com “Marc”, em uma carta que o garoto interpreta mal: acaba acreditando que o namoro não pode prosperar pelo fato de Marcão ser brasileiro, um abelhudo, um intruso na França, o que o deixa desiludido, a ponto de tomar seu primeiro porre. Porém, graças à compreensão de Pierre e do pai, Marcão consegue se acertar com Claire, e permitir que o namoro fosse até onde pudesse ir.
O momento mais emocionante do livro acontece quando, instado pelo professor de Geografia, Marcão, Rico e os outros colegas brasileiros do Colégio pesquisam sobre o Brasil – um país que, naquele momento, era desconhecido dos próprios. E descobrem um país que até mesmo os próprios brasileiros desconheciam.
Mas o que acontecerá a Marcão e sua família no momento em que chegar a notícia da Anistia e a oportunidade de voltar para o Brasil? Marcão será capaz de deixar, sem remorsos, a vida que construiu no exterior?
Puntel, ainda por cima, acrescenta algumas sutis referências a fatos acontecidos durante o Regime Militar Brasileiro, como os atos institucionais, a propaganda governamental, o caso Vladimir Herzog e o uso político da Copa do Mundo de 1970, o tricampeonato brasileiro. Logo, é um livro que vale a pena ler, quem quiser conhecer o período da Ditadura Militar. A história é emocionante, tem boas doses de humor, e você vai se surpreender ao ver uma família em perfeita harmonia apesar das intempéries – quase uma “família de comercial de margarina” durante um regime totalitário.
Pesa o fato de Puntel ter vivido no Brasil na época da Ditadura Militar – mas ele nunca precisou se exilar, felizmente – logo isso lhe dá cacife suficiente para escrever sobre a época.
Procurem na biblioteca e nas livrarias. Já é um bom pretexto para fazer uma visitinha à biblioteca de sua cidade. E para conhecer o período dos “anos de chumbo” através da ficção.
Para encerrar, mais dois cartuns referentes ao tema desenvolvido. O primeiro, já foi publicado há algum tempo atrás, mas não faz mal publicar de novo, agora que o tema está na pauta. O pesquisador Rafael Grasel conseguiu revelações – ou seria desculpas esfarrapadas? – inéditas sobre as torturas ocorridas na Ditadura Militar, antes da Comissão da Verdade. E se for verdade as teses sobre suicídio de presos políticos?
O segundo é mais recente, e corrobora o que disse parágrafos acima – vocês acham mesmo que a Ditadura Militar não foi corrupta?
Soube que, recentemente, a Arena, o partido “a favor” do Governo Militar, foi refundado agora, no século XXI. Para quem não sabe, durante o Regime Militar, só existiam dois partidos políticos, a Aliança Renovadora Nacional, ou Arena, de situação, e o Movimento Democrático Brasileiro, ou MDB, de oposição. Esses dois partidos acabaram fragmentados após o retorno do pluripartidarismo nos anos 80, período da redemocratização.
Não me admira que, com tanta gente defendendo o Regime Militar, alguém resolva refundar o CCC, Comando de Caça aos Comunistas, o terrível grupo paramilitar que ajudava na perseguição aos opositores do regime.
Nasci em 1984, um ano antes do fim “oficial” do Regime Militar. Que bom eu ter crescido durante a retomada da democracia no Brasil. Alguém já disse: “A pior das democracias é melhor que a melhor das ditaduras”. Por pior que seja este governo, eu não troco por uma nova ditadura, não mesmo. Seja de direita, seja de esquerda. Só se me garantirem que a liberdade de imprensa e de opinião não será afetada.

Até mais!

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