segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

DIOMEDES - A TRILOGIA DO ACIDENTE - Lourenço Mutarelli, o mestre da sordidez e dos prêmios

Olá.
Hoje, volto, mais uma vez, a falar de quadrinhos. E de quadrinhos brasileiros, visto que estamos na proximidade de mais um dia 30 de janeiro, Dia do Quadrinho Nacional. E, para esta ocasião, estou preparando eventos especiais para este blog pecador.
A HQ de hoje é um pequeno clássico do quadrinho nacional. Há tempos fora de catálogo, foi relançada recentemente.
Mas, antes de falar da HQ, vou falar do autor: Lourenço Mutarelli.

O CRIADOR

Sim. Lourenço Mutarelli Jr., um dos mais premiados autores de HQ dos anos 90 do século XX. E não sem motivo.
Nascido em São Paulo, Capital, em abril de 1964, Lourenço Mutarelli Jr. é filho do delegado de polícia Lourenço Mutarelli (a família Mutarelli tem tradição policial – o irmão e a avó de Mutarelli Jr. também são policiais). Lourenço Jr., entretanto, resolveu seguir a carreira artística, formando-se na Faculdade de Belas Artes de São Paulo em 1983. No mesmo ano, começou a colaborar para os Estúdios Maurício de Souza, onde ficou até 1987.
No final dos anos 80, iniciava a efervescência dos quadrinhos adultos no Brasil –o sucesso comercial da revista Chiclete com Banana inspirou muitas pequenas editoras, como a VHD Diffusion, a Vidente ou a Press Editorial a lançar revistas de histórias cheias de sexo e violência, sem os paliativos exigidos pelas editoras maiores, como a Abril, a EBAL e a Globo (mesmo obras consagradas como O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller ou Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons, as HQ mais “fortes” da década, não pareciam tão ousadas assim, perto de histórias de Watson Portela, Laerte, Mozart Couto ou E. C. Nickel). Lourenço Mutarelli também iria se filiar ao movimento. Em 1988, ele lança, pela editora PRO-C (de propriedade do artista underground e escatológico Francisco Marcatti) seu primeiro fanzine, Over-12, e uma HQ para a célebre revista Animal, da VHD Diffusion. Em 1989, aparece seu segundo fanzine, Solúvel, também pela PRO-C. Aí, ele começa a colaborar com diversas publicações adultas, como as revistas Porrada Special e Pau-Brasil, da editora Vidente. Nessa mesma editora, ele edita a revista Tralha, que durou apenas dois números, ao lado de Marcatti e do poeta cego e marginal Glauco Mattoso, que se tornaria um “guru” para Mutarelli.
Em 1990, ele colabora para a revista Mil Perigos.
Mas foi em 1991 que ele começou a se tornar mais conhecido nacionalmente. No mesmo ano em que lança a sua primeira graphic novel, Transubstanciação, pela editora Graphic Dealer, Mutarelli é premiado: recebe o prêmio de Melhor HQ do Biênio na I Bienal Internacional de Quadrinhos do Rio de Janeiro, o HQ MIX e o Ângelo Agostini. E já começa a chamar atenção por seus “argumentos limpos” e “desenhos sujos e pesados”, em histórias envolvendo a sordidez humana – e, por isso, seus personagens quase sempre morriam no fim.
Em 1993, veio o segundo álbum, Desgraçados (editora Vidente), que faturou outro HQ MIX.
Em 1994, inspirado na esposa, Lucimar, Mutarelli lança o álbum Eu Te Amo, Lucimar, pela editora Vortex (outro HQ MIX).
Entre agosto de 1995 e junho de 1996, época em que seu filho Francisco nasceu, segundo o próprio Mutarelli, foi o período mais longo, na década, em que ele não desenhou quadrinhos, descontente que estava com os rumos do mercado. Após passar por uma “momentânea crise financeira... há 37 anos”, segundo ele falou para a esposa, Mutarelli começa a trabalhar para a editora Devir, fazendo ilustrações para livros de RPG.
Em 1997, publicou A Confluência da Forquilha (editora Lilás), sua história mais estranha (segundo palavras do próprio), vencedora dos prêmios Nova e HQ MIX. Esta seria a última HQ produzida por Mutarelli, mas ele voltou atrás.
Em 1998, pela Devir, que ele lançou sua primeira coletânea de histórias curtas, Sequelas (mais um HQ MIX na estante). Ele também lançou, pela Edições Tonto de Porto Alegre, a mini-HQ Réquiem (coleção Mini Tonto).
Foi em 1999 que ele iniciou aquela que muitos consideram sua obra-prima, a série O Enigma do Enigmo, também conhecida como A Trilogia do Acidente, estrelada por seu primeiro personagem fixo, o detetive Diomedes – o primeiro personagem que Mutarelli não quis matar no final. O primeiro álbum da “trilogia de quatro álbuns”, O Dobro de Cinco, saiu em 1999, pela Devir (dois HQ MIX – Melhor Desenhista e Melhor Álbum – e um Ângelo Agostini). Em princípio, nem era pra ser uma trilogia, mas a elaboração acabou levando Mutarelli a continuar as aventuras de Diomedes em O Rei do Ponto (2000). E, influenciado por uma viagem que fez a Portugal, na ocasião em que O Dobro de Cinco foi lançado nesse país, ambientou os dois outros álbuns da trilogia nesse país: A Soma de Tudo – Parte 1 (2001) e Parte 2 (2002). Todos pela Devir. E que garantiu ao autor mais um HQ MIX de Melhor Roteirista. Foi em 2001 que Mutarelli acabou perdendo o pai, seu maior apoiador nesse projeto.
Mutarelli também colaborou com a coletânea Front, da editora Via Lettera, e com o álbum coletivo Brazilian Heavy Metal. O álbum seguinte de Mutarelli é a coletânea Mundo Pet (Devir, 2004), de histórias coloridas (outro HQ MIX). E, em 2005, a autobiográfica A Caixa de Areia, também pela Devir (outro HQ MIX). Sua última graphic novel é Quando Meu Pai se Encontrou com o ET Fazia um Dia Quente (Companhia das Letras, 2011).
E em 2012, Mutarelli recebeu o prêmio Ângelo Agostini de Mestre do Quadrinho Nacional.
Em 2002, Mutarelli começara a mudar o foco de sua arte: começou a escrever romances. Nesse mesmo ano, ele lançou o primeiro, O Cheiro do Ralo, pela Companhia das Letras, que publica seus romances seguintes. Em 2004, ele lança dois: Jesus Kid e O Natimorto.
Em 2007, pela Devir, é lançado O Teatro das Sombras, coletânea de suas peças de teatro (sim, ele escreveu peças de teatro também).
Em 2008, mais um romance: A Arte de Produzir Efeito Sem Causa.
Em 2009, vem o romance Miguel e os Demônios, além da reedição de O Natimorto, por conta da adaptação cinematográfica (ver adiante).
Em 2010, outro romance, Nada de Faltará.
Em 2011, a Companhia das Letras reedita O Cheiro do Ralo. E, em 2012, a Trilogia do Acidente é reeditada, pela mesma editora, em álbum único. E ainda recebe o HQ MIX de Melhor Publicação de Clássico em 2013.
Mutarelli, além de seus trabalhos para HQ e literatura, também tem passagens pelo cinema. A sua primeira incursão, indireta, foi em 2004, quando seus desenhos foram inseridos no filme Nina, de Heitor Dhalia, uma adaptação de Crime e Castigo, de Dostoiévski. Em 2007, o mesmo Dhalia adaptaria O Cheiro do Ralo, com o autor Selton Mello como o personagem principal, um sórdido vendedor de quinquilharias. O filme se torna cult, apesar do baixo orçamento. E Mutarelli ainda faz uma ponta nesse filme!
Em 2009, o diretor Paulo Machline adapta O Natimorto para o cinema. Detalhe: o próprio Mutarelli participa como ator principal. E não fica só nisso: em 2013, Mutarelli atua no curta-metragem Mesa para Dois, de Amilcar Oliveira, que adapta uma das HQ da série 10 Pãezinhos, dos gêmeos e superpremiados Fábio Moon e Gabriel Bá. Os dois, inclusive, haviam dedicado o álbum (lançado em 2006) ao próprio Mutarelli.

O ACIDENTE
Pois o álbum de Mutarelli que escolhi para comentar foi justamente DIOMEDES – A TRILOGIA DO ACIDENTE, a reedição da obra-prima de Mutarelli pela Companhia das Letras.
Bão. Como eu disse, a TRILOGIA DO ACIDENTE foi iniciada em 1999, com o primeiro álbum publicado, O Dobro de Cinco. Mutarelli iniciou a produção do álbum em 1997, meio que por hobby, enquanto o desenhista trabalhava nas ilustrações de RPG. Em princípio, nem era para ser uma trilogia, e o detetive Diomedes só iria aparecer no início e no fim do álbum. Porém, um fator pesou na criação do personagem: Mutarelli criou o detetive inspirado no pai. Desse modo, Diomedes seria um alter ego de Lourenço Mutarelli, o velho, nas idiossincrasias e também nas piadas. Mutarelli pai inclusive sugeria piadas para o personagem, além de conferir as páginas desenhadas.
Foi por isso que Diomedes foi o primeiro personagem que Mutarelli Jr. não conseguiu matar no final do primeiro álbum. Ele pretendia apenas dar continuação ao primeiro álbum quando produziu O Rei do Ponto, em 2000, mas aí, na elaboração da história, apontou-se a possibilidade de uma trilogia. Mas a trilogia acabou se estendendo além do necessário – Mutarelli resolveu dividir o terceiro capítulo, A Soma de Tudo, em duas partes, publicadas respectivamente em 2001 e 2002. Dois fatos influenciaram essa divisão: O primeiro foi a viagem que Mutarelli fez para Portugal, em 2001, para lançar O Dobro de Cinco no Festival de Banda Desenhada de Amadora, perto de Lisboa – logo, Diomedes vive sua aventura em Lisboa.
O segundo fato foi o falecimento do pai, em 6 de junho de 2001. Lourenço Mutarelli, o velho, só pode ver a nova aventura de Diomedes até o capítulo 5 de A Soma de Tudo – Parte 1 – a cena de transição para o capítulo 6, um detalhe do Mosteiro dos Gerônimos, de Lisboa, foi desenhado, segundo Mutarelli, como uma forma de oração.
Bem, foi desse modo que a trilogia chamada O Enigma do Enigmo passou a ser conhecida como DIOMEDES – A TRILOGIA DO ACIDENTE. E Diomedes ganhou projeção nacional. Foi noticiado, inclusive, que O Dobro de Cinco ganharia uma adaptação para cinema, com estreia em 2009 – mas agora não sei informar se o filme foi realmente concluído.
Mas, como todos os outros álbuns de Mutarelli, fora os mais recentes, como Mundo Pet e Quando Meu Pai se Encontrou com o ET..., há tempos os álbuns da Devir d’A TRILOGIA DO ACIDENTE estão fora de catálogo nas livrarias – não são fáceis de achar nem em sebos. Só recentemente, o autor autorizou que Desgraçados fosse disponibilizado para download na internet (falando nisso).
Bem, a falta foi suprida em 2012. A Companhia das Letras lançou, em álbum único, DIOMEDES – A TRILOGIA DO ACIDENTE, todos os quatro álbuns mais extras, num álbum de 432 páginas, revisado e com novo letramento, feito por Lilian Matsunaga, que imita, ao máximo, o letramento original de Mutarelli.
Mas o álbum conserva a principal característica da obra original: o desenho detalhado, sujo e pesado, apoiado em um ótimo argumento e um roteiro bem conduzido, cheio de um humor agridoce, mas que pode decepcionar aqueles que gostam de ação, movimento, que esperam mais aventura e suspense. Em certos momentos, a história é praticamente paralisada por conta dos longos diálogos entre os personagens. Quanto à arte, ela também passa por uma evolução: no primeiro álbum, os personagens parecem repugnantes, desenhados com mão pesada, com erros (propositais) de proporções anatômicas, carregando no preto. Nem as mulheres que aparecem na história ficam bonitas no traço carregado de sordidez de Mutarelli – todos os personagens apresentam rugas, espinhas, sardas, pequenas cicatrizes... São, em suma, mais próximos das pessoas comuns, dos tipos urbanos afetados pela poluição, pela solidão no meio de uma multidão e pela sordidez dos edifícios e do lixo espalhado nas ruas. Na altura do quarto álbum, Mutarelli alcança uma arte mais tridimensional, os personagens tem proporções anatômicas mais equilibradas, mas ainda cheios de rugas, veias saltando, feridinhas...Mutarelli, ainda por cima, dá sugestões para a trilha sonora de algumas cenas, como “Paradise Nevada” de John Cale e Bob Neuwirth, numa cena de perseguição em O Dobro de Cinco; “Defeito 14: Xiquexique”, de Tom Zé e José Miguel Wisnik, em outra cena de perseguição, em O Rei do Ponto; e “Channels and Winds”, de Philip Glass e Ravi Shankar, numa das cenas de Diomedes em Lisboa em A Soma de Tudo – Parte 1. E, num “ranço” por conta da situação econômica e social do então governo FHC, Mutarelli chama o Brasil de “Braxil” (e brasileiros de “braxileños), e São Paulo, de “San Pablo”. E a história ainda inclui momentos de violência explícita, palavrões e nada excitantes cenas de sexo. Leitura não recomendada para menores.
Ao fim do álbum, um arquivo inédito, reunindo tiras, esboços e ilustrações incompletas – incluindo tentativas de se fazer uma série de tiras de Diomedes e uma história curta, que Mutarelli nem se deu ao trabalho de terminar – em muitos momentos, dá pra ver o lápis, os textos mais ou menos definidos... Meio que a história se transforma gradativamente em esboços.
O álbum, entretanto, perdeu um extra de A Soma de Tudo – Parte 2 que, com certeza, seria precioso: um caderno em que diversos artistas brasileiros interpretam, a seu modo, o detetive Diomedes: Marcelo Gau (hoje, Marcello Quintanilha), Marcelo Campos, Newton Foot, Fábio Zimbres, Samuel Casal, Luke Ross e Fernando Gonsales homenagearam Diomedes.
Mesmo assim, como dito, ganhou em 2013 o Prêmio HQ MIX de Melhor Publicação de Clássico.

A CRIATURA
Bom. Como eu disse, Mutarelli criou Diomedes inspirado no pai.
Diomedes é um detetive particular, mas passa longe do glamour típico da categoria ficcional. Não é um sujeito elegante, bom de briga, brilhante em deduções, sempre cercado de belas mulheres e grandes intrigas: apesar do chapéu e do terno, está mais para um cara comum, um sujeito qualquer que luta para sobreviver nesse mundo que quer mais é devorar os justos – a eles, segundo a Bíblia, resta o paraíso.
Delegado de polícia aposentado, e cuja renda provém (mal e mal) da aposentadoria, que ele tenta complementar com as atividades de detetive particular, Diomedes é gordo, quase obeso, usa um bigodinho fora de moda, beberrão, fuma feito uma chaminé, cínico, cujo maior talento parece ser contar piadinhas inadequadas para a ocasião ou causar péssimas primeiras impressões. Quer dizer: Diomedes, a princípio, não inspira simpatia com sua aparência repugnante e seu linguajar chulo. Mas basta cinco minutos de conversa para desarmar o interlocutor e as impressões sobre o gordão ficarem melhores. E as piadas que o gordo conta no decorrer do álbum fazem sentido dentro do contexto, embora sejam anedotas que a maioria já conhece.
Diomedes é definido como um sobrevivente: cínico, não espera nada do mundo nem das pessoas; obstinado, decide levar adiante o caso que aceitou, mesmo sendo inútil continuar; sábio, já sabe observar a ironia do mundo.
Diomedes atende em um escritório que segue o estereótipo dos escritórios de detetives: mal iluminado (clima noir é imprescindível), com janelas com persianas, mesa, arquivo, vidro na porta – mas não tem o ventilador no teto.Ele não bebe de garrafinhas de bolso, ele emborca mesmo garrafas grandes de cachaça, que ficam espalhadas pelo escritório. E se sente nu sem o seu revólver no coldre, mesmo que não precise usá-lo.
No início da trama, Diomedes é casado com Judite, mulher a quem o tempo já roubou a beleza. Diomedes ama a esposa, mas não é correspondido: Judite o trai quando ele não está em casa a serviço. Diomedes tem dois grandes sonhos: dar à esposa um sofá de três lugares e fazer uma viagem para Buenos Aires, Argentina, e colocar um cigarro na estátua do músico Carlos Gardel.
E ele tem a grande chance de realizar esse sonho quando um cliente chega a seu escritório, pedindo para encontrar uma pessoa desaparecida há tempos. Uma aventura que fará Diomedes cruzar com tipos tão bizarros quanto ele.

A TRILOGIA
O DOBRO DE CINCO, cujos capítulos são focados nos personagens que aparecem em fotos nas páginas de entrada, começa quando um homem que se identifica como Hermes (ele seria originalmente o personagem principal da trama) entra no escritório de Diomedes. A princípio, o detetive faz deduções sobre a vida do homem, mas este, irritado porque o detetive fica o chamando de “garoto”, devolve uma dedução acerca da vida do gordo. Depois de uma breve discussão cheia de farpas, os dois entram em acordo (a cena mais antológica de todo o primeiro álbum).
E é num diálogo entre Diomedes e Judite, em casa, que o caso é exposto ao leitor: Diomedes foi encarregado de encontrar Enigmo, um famoso mágico de grande habilidade que está sumido há tempos. Há alguns anos, Enigmo teria feito uma apresentação particular para o pequeno Hermes, no dia de seu aniversário – Hermes seria o herdeiro de um rico empresário do café; e agora, Hermes quer uma apresentação do mágico no aniversário de seu filho.
As primeiras pistas fornecidas a Diomedes para encontrar o mágico estão em um circo mambembe e falido em uma cidadezinha do interior, para onde Diomedes se dirige (enquanto isso, Judite chama um eletricista em casa, só para transar com ele no meio da sala). Lá, ele entrevista os artistas: um palhaço, Chupetin, casado com uma ex-engolidora de espadas que hoje é mulher barbada, que, mesmo sem fazer graça e filosofando seriamente sobre as misérias da profissão, faz Diomedes se contorcer de rir; um trapezista que não sabe fazer outra coisa na vida senão se balançar no trapézio; um domador de leões enlouquecido, Lorenzo; e um travesti cartomante, Melissa. Esses dois últimos constituem capítulos importantes. Lorenzo, um domador de leões maneta e viciado em dardos tranquilizantes, atirados pelo assistente Montanha, praticamente enlouquecido como um profeta do apocalipse, faz algumas revelações sobre Enigmo, que seria capaz de operar milagres e se dizia Jesus Cristo. Durante a entrevista, Diomedes, que perde a cabeça diante do domador, acaba atacado pelo decrépito leão Freeway, animal de estimação de Lorenzo. Ferido, Diomedes vai se consultar com Melissa, que, de travesti, diante dos olhos do detetive, se transforma em uma mulher de verdade, enquanto vê nas cartas do tarô um futuro nada promissor ao caso em que o gordo está envolvido. É nesse capítulo que é explicado o sentido do título do primeiro álbum, referente ao arcano 10 do tarô, a Roda da Fortuna, significandoqueda e também renovação. Mas Diomedes, enlouquecido, espanca Melissa e arranca a informação que queria – e, antes de ir embora do circo, arma a morte de Lorenzo, simplesmente trocando um dos dardos tranquilizantes de sua espingarda por uma bala de verdade. Ou seja, a visita ao circo mexe com a cabeça do detetive – e os efeitos serão sentidos nos próximos álbuns da trilogia, onde Enigmo é citado uma porção de vezes.
No interlúdio, somos apresentados aos pistoleiros de aluguel Zoião e Gambero, que tem importância no desfecho da trama.
Depois de alguns lances, incluindo uma visita ao escritório de Diomedes de uma mulher que quer descobrir quem é a amante do marido – ela é a esposa do eletricista com quem Judite trai Diomedes – o detetive e Hermes vão à procura de Enigmo, que estaria refugiado em um sítio distante da capital. Mas, no correr da viagem, Hermes acaba revelando que não é como se apresentou ao detetive; que o dinheiro que usará para pagar o detetive nem é dele; e o álbum tem um desfecho trágico, quando os dois pistoleiros saem em perseguição de Hermes e o matam. O DOBRO DE CINCO tem o final em aberto para Diomedes, que, gravemente ferido, espera seu fim enquanto fuma um cigarro.
Muitos leitores devem ter estranhado que o álbum tenha terminado assim, no clímax. Mas teriam de esperar até o ano seguinte, quando O REI DO PONTO foi publicado, para saber o que aconteceu a Diomedes, como foi que ele escapou da morte.
No início de O REI DO PONTO, Diomedes se encontra na pior: deprimido, dependente de bengala para andar, morando no escritório, pois fora abandonado pela esposa, que o trocou por outro e ainda o humilhou (sua maior dor). E é nessa situação que Diomedes é encontrado pelo policial Germano, que bate à porta de seu escritório. Germano, que no correr do álbum acaba se revelando um policial irônico, violento, corrupto e cruel, é da cidadezinha onde se localizava o Grande Circo, e possui as provas que ligam Diomedes à morte do domador Lorenzo (e pensa em usar tais provas para chantagear o gordo). Desse modo, ele exige que Diomedes seja seu parceiro extraoficial no caso em que está trabalhando no momento. É durante o diálogo entre Diomedes e Germano – que inclui até uma garrafada na cabeça – que o gordo conta, em flashback, como escapou dos assassinos Zoião e Gambero. Aliás, Diomedes conta que Gambero, enlouquecido, acaba matando a tiros o parceiro Zoião, que, inacreditavelmente, morre em pé.
Depois que conseguem se entender, Germano e Diomedes firmam parceria. E, na reunião seguinte, no escritório do gordo, Germano leva junto o parceiro oficial, Waldir, um negro culto, um tanto nervoso, mas que tem um problema: ao invés de pronunciar “cozinha”, pronuncia “cunzinha” (muito pelo fato de sua mãe ser semianalfabeta), tornando-se assim alvo das piadas de Diomedes. Germano e Waldir expõem o caso: eles querem que Diomedes auxilie a pegar um serial killer que envenena casais com veneno de rato após sessões de ménage a trois (relações sexuais a três). Como, durante a perícia, é constatada a presença de veneno nos três copos de bebida encontrados nas cenas dos crimes, os policiais deduzem que o assassino pratique mitridatismo (consumo de veneno em pequenas e progressivas doses, para que o corpo se imunize). A prática teria sido criada pelo rei grego Mitrídates VI, governante da região do Ponto, no século II a.C. (daí o nome do álbum). E um plano é traçado para pegar o assassino – mas, para esse plano, o próprio Diomedes terá de se mitridatizar, consumindo pequenas doses de veneno de rato nas refeições – por isso, Germano passa a fazer as refeições com ele. E Diomedes só concorda em participar depois que Germano o espanca. (o diálogo entre Diomedes, Waldir e Germano acaba se tornando outro momento antológico do álbum).
Para entrar no clima das investigações, Diomedes vai ter uma conversa com o poeta Glauco Mattoso, um especialista em mitridatismo (não foi por acaso que Mutarelli resolveu homenagear o seu guru em O REI DO PONTO, lhe dando uma participação especial no álbum como ele mesmo. Aliás, Mutarelli cita ao longo do álbum alguns dos sonetos – poemas com duas estrofes de quatro versos e duas com três versos – de Mattoso, que recentemente bateu o recorde de elaboração desse tipo de poema, compondo cerca de 1000 sonetos).
Em certo momento, Waldir, o único personagem que parece realmente interessado no bem-estar de Diomedes, chama o gordo para uma conversa particular em um beco. O negro, que está agindo sob chantagem de Germano, revela que o policial pretende, na verdade, moldar Diomedes ao perfil do assassino procurado, e jogar nele a culpa pelos assassinatos dos casais. Isso deixa Diomedes, meio que com a personalidade afetada pelo veneno, decidido a pegar o assassino.
Mas o plano para pegar o assassino sai meio que por água abaixo: em um motel barato, Diomedes se passaria por um “corno manso”, enquanto uma prostituta faria o papel de esposa; e o assassino, convocado para a ménage mediante um anúncio em uma revista de sexo bizarro, seria pego em flagrante por Germano e Waldir, que escutam tudo em outro quarto – e, com Diomedes mitridatizado, ele em tese não morreria envenenado. Mas Diomedes resolve não abrir a porta do quarto para o “parceiro” e transa com a prostituta, enquanto Germano, nervoso, espanca Waldir. Mas o negro consegue salvar sua própria pele e a de Diomedes, com uma notícia de jornal que, na verdade, é mais um desvio de foco. Desse modo, a principal lambança de Mutarelli nesse segmento seja ter eliminado rapidamente o argumento do mitridatismo, que sustentaria o título. O fato de Diomedes ter se mitridatizado, ao fim, não serviu pra nada.
E, na cena seguinte, o detetive e os policiais vão até uma oficina, em busca do novo suspeito dos crimes. E a cena seguinte é emocionante, com a perseguição ao rapaz, tiroteios, Diomedes perseguindo o suspeito com uma escavadeira, e Germano, drogado, cantando “A Velha a Fiar”, uma velha cançoneta.
Germano, com certeza, é o personagem mais detestável da série, mas o pior: ele se dá bem no fim da história, enquanto que a Diomedes só lhe resta voltar a sua depressão inicial.
Mas ele já parece melhor no início de A SOMA DE TUDO – PARTE 1. A bem da verdade, o álbum começa em Lisboa, Portugal, quando uma sociedade secreta executa um homem que se recusou a se recusar a revelar o maior segredo da capital portuguesa – e, com isso, é atirado aos tubarões do Oceanário de Lisboa. Só depois, vemos Diomedes no escritório, recebendo a visita de Waldir, que inclusive o presenteia com um peixinho dourado. Durante a conversa, Diomedes conta a Waldir algo que havia ficado em aberto nos álbuns anteriores: como ele encontrou Enigmo, que já estava decrépito e cujas habilidades não correspondiam mais à idade. Algo que ele não contara para Germano.
É aí que entra na história o advogado picareta Dr. Gouveia, um velho amigo de Diomedes, que propõe ao detetive um caso internacional: investigar o desaparecimento de um homem em Lisboa, em troca de um generoso pagamento: cinco mil dólares. Para impressionar a mulher do desaparecido, a irritada Suelen, que vem ao escritório do gordo, Gouveia bagunça o escritório, com a desculpa de estarem procurando um microfilme, e falam frases em inglêse jargão de advogado. As únicas pistas do caso são dois presentes que o desaparecido, Pierino, mandara à mulher: um barquinho em miniatura e uma foto de uma estranha mulher, junto a um punhado de frases enigmáticas.
Antes de ir para Lisboa, Diomedes resolve visitar a ex-mulher. Judite não parece contente em receber o detetive, mas, mesmo assim, o gordo presenteia-a com parte do pagamento, para que ela enfim compre o sonhado sofá de três lugares.
Já em Lisboa, Diomedes se encontra com o fotógrafo João. E, numa conversa com ele numa confeitaria lisboeta, Diomedes vê a sombra de Enigmo persegui-lo mais uma vez: João fala que o mágico, além de ter falecido há alguns anos em Lisboa, foi uma figura importante na capital portuguesa – o que contraria o que Diomedes descobriu acerca do mágico. No instante seguinte, os dois são atacados por bandidos, que espancam Diomedes e pegam a foto. Nesse ponto, Diomedes se encontra perdido – João fugira com a bagagem de Diomedes durante a confusão, o detetive não consegue hospedagem e chega a telefonar a cobrar para Waldir, pedindo ajuda – pois, se não conseguir resolver o caso, ele terá de devolver os cinco mil dólares a Suelen. O clímax do álbum se dá quando Diomedes, investigando os lugares onde Pierino supostamente esteve da última vez, acaba encontrando a tal mulher da foto, que parece aparecer por toda a parte, nas ruas lisboetas. E, na correria, que mexe com a mente do embriagado Diomedes, ele volta a encontrar João, que promete ajudar o detetive a resolver o caso – com a condição que a solução não seja revelada a mais ninguém.
Mas o “detetive intercontinental”, como Diomedes passa a se denominar, revela a solução do caso para Waldir, em A SOMA DE TUDO – PARTE 2. O álbum começa quando Diomedes retorna ao escritório no Brasil, ops, “Braxil”. E só depois é que ele resolve chamar Waldir para conversar – não sem antes tirar sarro do negro “cunzinha” ao telefone.
Waldir propõe ajudar Diomedes a limpar o escritório, ainda bagunçado por causa da história do “microfilme” de Gouveia. E, num longo diálogo pontuado por interrupções e divagações filosóficas entre Diomedes e Waldir, o gordo conta como conseguiu resolver seu primeiro caso: como descobriu que Pierino morreu (ele era o homem que foi jogado aos tubarões na primeira parte), e como descobriu o segredo de Lisboa, a causa da morte do procurado. Porém, como Diomedes não pode revelar a Suelen que o marido morreu, ele traz na bagagem uma foto forjada, que dá a entender que o finado trocara-a por outro – uma fotomontagem preparada por João. Desse modo, Diomedes não teria de devolver os cinco mil dólares. Para descobrir essa verdade, Diomedes, ainda em Lisboa, procura um dos amigos do finado, Paulo dos Fazeres, um editor de HQ. O encontro dos dois se dá no Festival de BD de Amadora, onde os dois estão cercados de diversos personagens célebres das HQ que circulam entre os estandes: Asterix, Peanuts, Ferdinando, Ranxerox, Robert Crumb... Mas, para se aproximar de Paulo, ao identificar por perto os mesmos bandidos que o espancaram na confeitaria, Diomedes se disfarça de Pikachu (Pokemon, naquele ano, ainda estava na crista da onda). Tudo nma homenagem de Mutarelli ao mundo das HQ (no fim do álbum, Mutarelli identifica os autores de cada um dos personagens retratados nesse capítulo). Aliás: Paulo dos Fazeres, que pontua sua conversa com divagações filosóficas sem sentido, na verdade, é um “avatar” do então editor de Mutarelli, Mauro Martinez dos Prazeres, da Devir (chamada no álbum de “Porvir”). E o próprio Mutarelli também tem um “avatar” na história: o autor de quadrinhos Zigmundo Muzzarella, que se torna um aliado inesperado de Diomedes. Ele não apenas serve de guia para Diomedes através de Lisboa, mas conheceu Pierino – ele havia pedido que Muzzarella quadrinizasse suas descobertas sobre o segredo de Lisboa. Que segredo é esse? E o que a estranha mulher tem a ver com isso? E o que Enigmo, ainda por cima, tem a ver com tudo isso? Só lendo para entender, pessoal.
Ah: e antes que perguntem, não, Diomedes não confronta a tal sociedade secreta. O diálogo entre Diomedes e Waldir tenta encerrar a inquietante questão: afinal, existe ou não magia? Como ela, se existir, pode afetar as pessoas?
E, ao fim, acabamos gostando de Diomedes – ele não parece apenas o pai de Mutarelli: no fim, ele também acaba lembrando o nosso pai.
A edição, no fim, não pode faltar na estante dos apreciadores de HQ brasileira. É uma bela oportunidade de conhecer um clássico sem a necessidade de garimpar nos sebos ou pagar preços exorbitantes por exemplares encontrados.
O álbum custa R$ 60,00, em média. Procure nas suas melhores gibiterias.
E agora, para encerrar, a ilustração de hoje, by Rafael! Hoje, resolvi fazer uma releitura de uma ilustração do próprio Mutarelli, que vocês viram acima: “O Homem que Comeu Suas Próprias Mãos...” foi publicada na revista Porrada! Special no. 6, cerca de 1990. Fiz o melhor que pude – e, como poucas vezes nessa vida, até eu me surpreendi com o resultado. Mas não acompanhei a ilustração com um poema. Não é sempre que costumo publicar imagens assim, sórdidas. Até eu fico assustado.
Sei lá, me encontro meio desencantado com tudo ultimamente... uns fatos desagradáveis ocorridos por esses dias me fazem questionar essas atividades cotidianas... quem sabe, não seja o caso de eu também comer minhas próprias mãos? Não, o que estou pensando?! Descubro que preciso destas mãos mais que nunca!
De todo modo, aguardem novidades ainda para esta semana.

Até mais!

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