quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

PITECO - INGÁ - As aventuras do Homo Mauriciensis

Olá.

Hoje, nesta primeira quinta-feira que não publico tira inédita do Teixeirão (http://naestanciadoteixeirao.blogspot.com.br/), volto a falar de quadrinhos consagrados – e à beira da plena consagração.
Como é de conhecimento de muitos, em outubro de 2012 foi lançado o primeiro álbum do mais ambicioso projeto dos Estúdios Maurício de Sousa (que em 2013 promoveu uma série de eventos para celebrar os 50 anos da criação de seu carro-chefe, a Mônica), o selo Graphic MSP. Artistas brasileiros consagrados foram chamados para interpretar, à sua maneira, os clássicos personagens de Maurício de Sousa, em histórias de teor adulto. Quatro álbuns já foram lançados. E mais seis foram anunciados agora em novembro, durante o Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ) de Belo Horizonte, MG. Entre eles, as continuações dos dois primeiros álbuns, sucessos absolutos de público e crítica: Astronauta – Magnetar, de Danilo Beyruth (outubro de 2012) e Turma da Mônica – Laços, de Vítor e Lu Cafaggi (maio de 2013).

Estranhamente, o terceiro álbum da primeira leva do Graphic MSP, Chico Bento – Pavor Espaciar, de Gustavo Duarte (agosto de 2013) não chegou às bancas da minha cidade, por isso ainda não ganhou resenha aqui. Em compensação, acaba de chegar o álbum que fecha o primeiro ciclo com chave de ouro, PITECO – INGÁ, de Shiko, lançado em novembro de 2013.

SHIKO
O ilustrador, grafiteiro, quadrinhista e cineasta Shiko nasceu em 1976, em Patos, na Paraíba, estado natal do quadrinhista Emir Ribeiro, que foi um dos que colocou o estado na rota dos quadrinhos nacionais.
De forma resumida, Shiko já colaborou com diversas publicações do Brasil e do exterior, além de fazer regularmente exposições de seus trabalhos. PITECO – INGÁ é o seu quarto álbum de quadrinhos. Os três primeiros são: uma compilação de parte do material, de início de carreira, que ele publicou no seu fanzine Marginal Zine, pela editora Marca de Fantasia; o álbum independente Blue Note (2008), que recebeu indicação para o prêmio HQ MIX; e a sua adaptação para HQ do romance O Quinze, de Rachel de Queiroz, lançado pela editora Ática em 2012, que, além de ter sido selecionado para o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) para integrar o acervo de bibliotecas escolares, ganhou uma exposição exclusiva no Festival de Quadrinhos de Lyon, na França, neste ano de 2013. Como todos os artistas envolvidos no selo Graphic MSP, Shiko participara do projeto MSP 50, onde artistas foram convidados para reinterpretar os personagens da casa. Sua participação foi no terceiro álbum da série, MSP Novos 50, com uma história do Astronauta.

PITECO, O NOSSO BRUCUTU
Para o selo Graphic MSP, Shiko escolheu reinterpretar o personagem Piteco, o homem das cavernas de Maurício.
Criado em 1963 para as tiras de jornal, Pithecanthropus Erectus da Silva (acreditem, este é o nome completo do personagem) é um corajoso, ousado e inteligente caçador pré-histórico. É através dele que Maurício de Souza e equipe fazem reflexões sobre os rumos da humanidade, uma vez que Piteco, continuamente, não se limita em ficar no seu tempo: em várias histórias, Piteco é mostrado em outras épocas, como a Idade Antiga, a Média, a Moderna e a Contemporânea, fazendo reflexões sobre os rumos tomados pela humanidade, ao alterar de forma significativa a natureza e o mundo em geral. Maurício criou Piteco na mesma época em que nascia sua filha Magali, que, como todos sabem, virou personagem, assim como a Mônica.
Quando apareceu, Piteco seguia um vício comum aos quadrinhistas e criadores de desenhos animados quando retratavam a pré-história: convivia com dinossauros. Hoje, toda pessoa estudada sabe que os homens nunca conviveram com os dinossauros – eles foram extintos muito antes do aparecimento do primeiro hominídeo, o australopiteco, o primeiro macaco a adotar a postura bípede e liberar os membros posteriores para outras atividades que não apoiar o resto do corpo. Vários quadrinhistas seguiam esse vício comum, tendo por pioneiro o estadunidense Vincent T. Hamlin, criador do personagem Alley Oop - Brucutu (1934), e passando, mais tarde, pelos Flintstones dos Estúdios Hanna-Barbera. Aliás, nos primeiros tempos dos quadrinhos de Maurício, diz-se que teria sido Piteco quem teria chocado, sem querer, o ovo de onde nasceu o filhote de tiranossauro Horácio, outro popularíssimo personagem de Maurício que lida com as questões existencialistas.
Só em tempos recentes Piteco deixou de conviver com dinossauros e passou a conviver com animais mais condizentes com sua época, como mamutes e tigres dentes-de-sabre.Apesar de seu nome lembrar o do terceiro hominídeo da clássica escala evolutiva da humanidade (Australopithecus – Homo Habilis – Homo Erectus – Homem de Neanderthal – Homem de Cro-Magnon – Homo Sapiens), Piteco parece já ser um Homo Sapiens formado. O homem das cavernas de barba e cabelo de banana (assim como a Mônica), roupa de pele vermelha com pintas pretas e um tacape com um prego na ponta costuma se vangloriar da própria inteligência, o que o torna “superior” aos outros animais, pois, em sua época, os homens já dominam o fogo e criaram a roda. Mas ele também é atrapalhado, rude e desalinhado, às vezes – suas caçadas costumam ser frustradas. E, de algumas encrencas às quais se envolve, ele usa de inteligência para escapar.
Piteco vive na comunidade de Lem, em algum ponto do Brasil pré-histórico (como evidencia seu sobrenome tipicamente brasileiro, Da Silva). Os habitantes da comunidade constroem suas casas nas cavernas, montanhas e morros, deixando-as semelhantes aos atuais apartamentos. Com ele, convivem personagens como Thuga (que estreou junto com o Piteco na primeira tira), a garota jovem e gordinha apaixonada por Piteco, de roupa de pele amarela de bolinhas vermelhas e rabo-de-cavalo, e que sempre bola planos (na grande maioria das vezes, frustrados, principalmente pelo próprio caçador, que sempre foge do “compromisso”) para casar com ele; o inventor Beleléu, um cara à frente de seu tempo, porém trapalhão; o companheiro de caçadas Bolota; e a feiosa Ogra. Todos numa autêntica comédia pré-histórica, ao estilo Maurício de Souza, com as devidas liberdades poéticas, mas que já rendeu algumas histórias que se tornaram clássicas, como uma que adapta o clássico filosófico Mito da Caverna de Platão.

PITECO EM INGÁ
Bão. Em PITECO – INGÁ, Shiko, mais que reinterpretar o personagem, faz uma verdadeira aula de História, ao colocar o personagem numa trama que se aproxima da Pré-História como ela foi.
O nome do álbum deriva de uma pedra localizada na cidade de Ingá, na Paraíba. Essa pedra, de 24 m de comprimento por 3,5 de altura, está repleta de símbolos esculpidos lembrando seres humanos, astros, plantas e bichos e que, segundo arqueólogos, teriam sido elaborados por uma cultura extinta entre 2 mil e 5 mil anos atrás. A Pedra do Ingá foi tombada como patrimônio nacional em 1944, sendo um dos mais importantes registros arqueológicos brasileiros. A Pedra do Ingá tem grande importância no início da trama, pois os acontecimentos giram em torno das inscrições da pedra. E ainda reinterpreta mitologias típicas brasileiras, e combina com mitologias de outras culturas; tudo em uma grande homenagem a seu estado natal.
Shiko fez todo o trabalho sozinho: escreveu, desenhou, pintou e letreirou. Quase todo o trabalho foi feito à mão, pois as cores são em aquarela. Cada página é uma verdadeira obra-prima, tanto as divididas em quadros sem as linhas pretas nos limites quanto as páginas inteiras e páginas duplas. O traço segue o estilo europeu realista (Shiko atualmente reside em Firenze, na Itália), conferindo aos personagens e cenários realismo e toques de sensualidade. Alguns personagens passaram por uma verdadeira plástica nas mãos de Shiko, apesar de manterem as características dos quadrinhos de Maurício. O roteiro tem um tom sério, com um humor tímido, que investe tanto na aventura e na ação quanto na conversa, equilibrando cada elemento.
Nessa aula de História, ainda tem grande importância a característica da religião matriarcal seguida por diversas civilizações antigas: as divindades principais de muitas civilizações sedentárias (que ficam estabelecidas em um determinado local, onde sua subsistência gira em torno da agricultura e da pecuária) eram femininas, logo os sacerdotes dos deuses eram, principalmente, mulheres, cujo papel era a profecia e a cura. As mulheres, então, eram as que detinham os conhecimentos sobre ervas curativas e remédios. Com o tempo, as religiões matriarcais acabaram sendo desmontadas quando o monoteísmo judaico-cristão se impôs, baseado principalmente em divindades masculinas – e as mulheres passariam a ocupar postos inferiores na sociedade. As mulheres conhecedoras das ervas curativas ganharam a alcunha de feiticeiras, bruxas, portanto passíveis de sofrerem perseguição. Toda essa reflexão proposta por Shiko em PITECO – INGÁ já rende uma dissertação de mestrado.
Bem. Para a trama fluir melhor, Shiko atribuiu novos papéis aos personagens. Thuga, por exemplo, de uma simples jovem apaixonada, virou uma sacerdotisa, a que “enxerga com olhos de águia”; e Ogra, uma guerreira. No traço de Shiko, Thuga faz o tipo “gordinha sexy”, enquanto que a monstruosa Ogra passou por uma verdadeira plástica, ficando mais sensual (condição ressaltada nas cenas onde ela luta, com os ângulos indiscretos), mas não abre mão da força física. Já Piteco ganha mais virilidade, mas mantém seu papel de caçador e conhecedor de terrenos.
Outra característica crucial é o modo como cada um dos povos que compõem a trama se diferenciam. São três povos: os Homens-Tigre, cobertos de peles do referido animal e que possuem características negroides; o povo de Ur, arborícola e que usa adornos feitos de palha e folhas; e o povo de Lem usa roupas de pele e quase todos tem cabelos e barbas armados em arranjos de dreadlock (trancinhas parecidas com as dos cantores de reggae) – à exceção de Ogra, que tem a cabeça quase toda raspada. Dessa forma, o cabelo do Piteco de Shiko se aproxima dos “cabelos de banana” do Piteco de Maurício de Souza, mas sua barba é rala.

A TRAMA, VAMOS LOGO COM ISSO!
Está bem, está bem.
Na introdução, é contado que haviam três povos que, em tempos remotos, conviviam juntos, e passaram a viver separados depois de algumas gerações: os Homens-Tigre, caçadores; o povo de Ur, coletores e pescadores, que vivem nas árvores e nos pântanos; e o povo de Lem, que constrói casas em cavernas e vive da agricultura. Quem conta esta história é a sacerdotisa Thuga (narradora de toda a história), de Lem, num momento de crise: o rio que abastecia a aldeia está secando, e deixou à mostra as inscrições da Pedra do Ingá. As marcas deixadas pelo antepassados do povo de Lem indicam um caminho para a sobrevivência do povo: eles terão de migrar para uma nova terra, seguindo as manadas dos animais. Thuga faz esse alerta ao povo, que deverá partir no dia seguinte.
Só depois é que Piteco entra em cena. Ele demonstra estar contente em finalmente deixar, ainda que temporariamente, a vida sedentária e voltar à plena atividade de caçador-coletor – mas está relutante em assumir algum relacionamento com Thuga, tal como nos quadrinhos. Ou seja, embora esteja disposto a salvar Thuga dos perigos, ele não demonstra que o faz por amor à ela. É o amor que Thuga sente por Piteco, retratado por Shiko de modo sutil, que determina a decisão seguinte da garota: se deixar raptar pelos Homens-Tigre, que espreitam a aldeia de Lem, à procura da sacerdotisa, por motivos só revelados adiante. Com isso, outra das supostas profecias da Pedra do Ingá se realiza. Thuga sabe que, mesmo não demonstrando amá-la, Piteco irá resgatá-la.
É através do amigo Beleléu que Piteco sabe que Thuga foi raptada. E os dois, após terem um breve diálogo com Ogra, decidem ir atrás dela, se embrenhando nas perigosas selvas do povo de Ur (a terra dos Homens-Tigre fica mais adiante), seguindo os rastros dos Homens Tigre, que Piteco, como caçador, conhece bem. Enquanto isso, o povo de Lem segue na jornada às novas terras. Beleléu, na condição de inventor, usa de elementos avançados para sua época, como cabaças de “pó preto”, explosivo, cordas com ganchos e uma lamparina.
No caminho para chegar até Thuga, Piteco e Beleléu acabam se desviando do caminho, por conta de um engano do inventor, e indo parar nos assustadores domínios da deusa-demônio M-Buathan, que atrai os viajantes à morte. Detalhe: M-Buathan é uma interpretação de Shiko da lenda do Boitatá, mas, ao invés de ser retratada como uma cobra flamejante, o que é mais comum, é retratada como uma sensual mulher-demônio, capaz de evocar mortos-vivos para atacar Beleléu e Piteco, que só se salvam a muito custo, graças ao “pó preto”.
Na sequência seguinte, Piteco e Beleléu são atacados pelo povo arborícola de Ur. Mas quem os salva, desta vez, é Ogra, que decide acompanhar os homens na jornada. E é a guerreira quem, com a ajuda à distância de Thuga, e fazendo uso de conhecimentos exclusivos das mulheres, evoca outra divindade para auxiliar na busca: Arapó-Paco, interpretação pessoal de Shiko para o Curupira. O duende ruivo, que monta um tatu-gigante, e fala em uma linguagem indígena que sabe-se lá se foi criada por Shiko ou se existe mesmo, dá ao grupo, em troca do colar de dentes de Piteco, um amuleto de grande importância para o desenrolar da trama: uma pata de pássaro. É com esse amuleto que Ogra convoca criaturas que podem ajudar na busca. Primeiro, um bando de pássaros gigantes corredores, as “aves do terror”, que o grupo usa como montaria para alcançar os Homens-Tigre, seguindo pistas deixadas pela própria Thuga. Mas estes, à beira de um precipício, convocam a divindade Camazotz, o morcego gigante (uma divindade dos Incas, da região do Peru), e com ele voam para o seu vale. Mas Piteco convoca outra criatura alada, o Anhanguera (uma criatura pré-histórica extinta junto com os dinossauros, uma licença poética de Shiko), para voar até o vale.
Na aldeia dos Homens-Tigre, Thuga passa por apuros. O sacerdote da aldeia, um velho de aparência assustadora, acusa a sacerdotisa de Lem de estar jogando uma praga que está matando os Homens-Tigre, e a próxima vítima é a filha do chefe da aldeia, que já havia perdido a esposa. Porém, Thuga descobre que a doença, na verdade, está sendo provocada pelo sacerdote, rancoroso porque não conseguiu, em seu tempo de juventude, assumir o papel que cabia às mulheres, e quer se vingar delas (denúncia que Thuga faz alegoricamente). Thuga prepara uma poção para curar a filha do chefe, mas, como aparentemente ela falha, a sacerdotisa é oferecida em sacrifício para o Deus Tigre, feroz divindade principal do povo. A menina consegue se curar, mas mesmo assim, chega um bando de tigres para atacar Thuga, que é salva, em tempo, por Piteco, Beleléu e Ogra. Porém, a saga não terminou: o clímax comparece quando chega o Deus Tigre, um tigre monstruoso, reclamar seu sacrifício, ameaçando a aldeia. Para salvarem-se, Piteco, Thuga, Beleléu e Ogra precisam fazer uso de uma série de fatores, como a re-evocação de deuses, a confiança mútua entre os povos e o amor. Piteco terá de rever suas próprias convicções para salvar Thuga – será que, no fundo, o caçador ama ela, mesmo?
E o final da história é cheio de significados sutis, mas exige algumas múltiplas leituras – alguns leitores podem se decepcionar. PITECO - INGÁ é ótimo, mas ainda não consegue superar o melhor álbum da primerira leva, o Turma da Mônica - Laços. Com isso, a primeira leva do selo Graphic MSP fecha com chave de ouro. Agora, vamos aguardar o uso da história em sala de aula.
Ah: como extras, a biografia do autor, algumas páginas com esboços e o relato do processo de criação da obra e uma breve história do personagem. Total de páginas: 84, contando capa.
Preços: R$ 29,90 a versão de capa dura, e R$ 19,90 a versão em capa cartonada.
Agora, aguardemos os próximos álbuns.
Para encerrar, os já tradicionais desenhos deste que vos escreve. Desta vez, resolvi ressuscitar um personagem que criei há algum tempo atrás.
Antes mesmo de entrar na faculdade, havia criado o meu próprio Piteco, um tipo chamado Buba das Cavernas. Cheguei a desenhar algumas histórias com o personagem, guardadas no meu arquivo pessoal.
O Buba das Cavernas seria um jovem caçador de uma tribo mais “civilizada”, do período Neolítico (entre 10 e 6 mil anos atrás) que um dia foi morar numa aldeia onde os homens ainda vivem na ignorância paleolítica. Nas ilustrações, ele aparece com outros dois personagens que fariam parte da HQ, um inventor baixinho, Flin Flan, e Mima, uma mocinha sensual que Buba tenta conquistar. Ah, mas minha intenção era fugir do vício de fazer o personagem conviver com dinossauros: ele interagiria com criaturas condizentes com sua época, como mamutes e tigres dentes-de-sabre. Foi uma das minhas primeiras experiências com histórias longas. Quem sabe numa outra oportunidade eu coloque aqui umas amostras para vocês verem.
É isso aí, turma.
Até mais!

Nenhum comentário: