sábado, 8 de setembro de 2012

CHALAÇA, O AMIGO DO IMPERADOR - o canalha mais carismático do Brasil

Olá.

Hoje, voltarei a falar de quadrinho. E de quadrinho brasileiro, pois ultimamente os quadrinhos estrangeiros estão predominando neste blog, com as costumeiras postagens mensais sobre Luluzinha, Recruta Zero, Popeye e agora Gasparzinho.
Como no último dia 7 de setembro foi a Independência do Brasil, o quadrinho de hoje tem muito a ver com o tema. É a história da Independência Brasileira vista dos bastidores – e do ponto de vista de um personagem conhecido e ao mesmo tempo obscuro, no sentido de sua influência.
O álbum de hoje é CHALAÇA – O AMIGO DO IMPERADOR, de André Diniz e Antônio Eder.


OS AUTORES
Antes de partir para o quadrinhos, vamos falar um pouco dos autores.
André Diniz é um artista ativo desde o final do século passado e o início desde jovem século XXI. O carioca, nascido em 1975, é um dos fundadores do site Nona Arte, que fez algum sucesso no início do século disponibilizando HQs brasileiras para download, entre elas obras suas, desenhadas por ele mesmo ou por outros desenhistas. Foi este site que disponibilizou uma das primeiras versões em scan das primeiras páginas de A Garra Cinzenta. Atualmente, o Nona Arte comporta exclusivamente o portfólio de Diniz. Vejam: www.nonaarte.com.br/.
Diniz começou nos quadrinhos em 1999, quando começou a lançar a série Subversivos, com histórias ambientadas na Ditadura Militar Brasileira. Subversivos tem dois volumes impressos, Companheiro Germano (2000, arte de Laudo Ferreira Jr. e Omar Viñole) e A Farsa (2001, arte de Marco). Sem ligação com Subversivos, mas focando o mesmo período, temos ainda Ato 5 (2009, arte de José Aguiar). Mas o trabalho que começou a consagrar Diniz foi Fawcett (2000), com arte do saudoso Flávio Colin. Mais tarde vieram os surpreendentes 31 de Fevereiro (2001, texto e arte dele mesmo) e A Classe Média Agradece (2002, arte de Marco).
Em 2002, Diniz produz o fanzine Informal, vencedor do HQ Mix de 2002 de melhor fanzine).
Muitos dos trabalhos de Diniz são focados na História do Brasil e do mundo, principalmente a história afro-brasileira – principalmente os trabalhos lançados a partir de 2010. Com foco na história, temos Chalaça (2005, arte de Antônio Eder), Ponha-se na Rua (2006, arte de Tibúrcio) e Chico Rei (2006, texto e arte dele mesmo). Em 2007, Diniz ainda escreveu e desenhou A Incrível História do Homem Mais Velho do Mundo, e em 2008 começou a colaborar com a editora Escala Educacional, para a qual escreveu os roteiros de todos os volumes das séries História do Brasil em Quadrinhos, História do Mundo em Quadrinhos e quase todos da série Filosofia em Quadrinhos. Esses álbuns, com quatro volumes cada coleção, tem arte dos amigos Antônio Eder, Laudo, José Aguiar, Anderson e Daniel Brandão.
Em 2009, Diniz e Eder repetem a dobradinha no álbum 7 Vidas. No mesmo ano sai o já citado Ato 5.
A partir de 2010, Diniz começa a produzir inteiramente seus álbuns, focados na afro-brasilidade e cujas figuras assumem a estética típica da arte africana. Nesse contexto, saem O Quilombo Orum-Aiê (2010), A Cachoeira de Paulo Afonso (2011, adaptação do poema de Castro Alves) e O Negrinho do Pastoreio (2012). Sem nos esquecermos do álbum Morro da Favela (2011).
Antônio Eder, nascido em Curitiba em 1971, é desenhista e professor de quadrinhos. Foi parceiro de Diniz na criação do site Nona Arte e parceiro do mesmo nos já citados álbuns Chalaça, 7 Vidas e nos álbuns da Escala Educacional. Colaborou no fanzine Informal e já foi laureado com o HQ Mix pelo álbum Manticore. Em 1997, Antônio Eder fez parte do grupo de artistas que, em homenagem à Gibiteca de Curitiba, começam a produzir as histórias do herói O Gralha, versão modernizada do obscuro super-herói curitibano Capitão Gralha, criado pelo mais obscuro ainda Francisco Iwerten no início dos anos 40. O primeiro álbum compilando as histórias do personagem, publicadas a partir de 1998 para o jornal Gazeta do Povo de Curitiba, foi vencedor do HQ Mix de 2001. O currículo de Eder ainda inclui desenhos animados. Conheçam um pouco de suas atividades em http://antonioeder.blogspot.com.br/.

O HOMENAGEADO
CHALAÇA foi, como já dito, lançado em 2005, pela editora Conrad. Trata da história do Primeiro Reinado Brasileiro (1822 a 1831) sob o ponto de vista do personagem Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, o amigo pessoal de D. Pedro I. O álbum, portanto, é uma semi-biografia de um dos mais controversos personagens desse período.
Todos já sabem que a vida pessoal de D. Pedro I, o proclamador de nossa independência política, dificilmente pode ser dissociada de sua vida política. O filho do rei português D. João VI, aquele que em 1807-1808 veio ao Brasil fugido da invasão das tropas de Napoleão Bonaparte de seu país, foi ao mesmo tempo um governante de pulso firme e pouca paciência, exercendo o poder de modo quase absolutista num período de crise para a nascente nação, e também um bon-vivant, promíscuo e pouco discreto. E ele tinha com que partilhar os seus, digamos, momentos de descontração: o seu amigo Chalaça, cujo apelido, nos dicionários, significa gracejo, troça, piada.
Francisco Gomes da Silva era português, nascido em Lisboa em 1791, filho bastardo de um barão e de uma aldeã pobre, mas que foi “adotado” por um protegido desse barão. Depois de uma breve passagem pelo seminário e após fugir espetacularmente de uma condenação à morte, Francisco veio ao Brasil junto com a Família Real Portuguesa, em 1808. Inicialmente ele exercia a profissão de barbeiro na barbearia do pai “adotivo”, porém era mais conhecido na noite, como um notório boêmio, beberrão e sempre à cata de mulheres. Foi em 1820 que ele conheceu D. Pedro, que tinha mania de sair escondido, à noite e quase incógnito, para farrear. Em breve, os dois se tornam amigos, pois tinham muito em comum. D. Pedro, quando falava no Chalaça, dizia que ele era “o único que me fazia rir”.
Chalaça exerceu influência dentro do círculo de poder de D. Pedro. Foi nomeado secretário particular do Imperador, chefiou um “gabinete secreto” onde influenciava nas mais importantes decisões do governo, gritou com D. Pedro a Independência, ajudou a escrever a primeira Constituição do Brasil, em 1824, e dissolveu a assembléia Constituinte de 1823. Tudo isso sem deixar de colecionar amantes (suspeita-se que Chalaça fosse amante mancomunado de Domitila de Castro Canto e Melo, a futura Marquesa de Santos e mais famosa amante de D. Pedro I, com quem inventava intrigas para tirar vantagens em cima do Imperador), e intrigas. E também inimizades dentro da corte, sendo a mais notória o ministro Caldeira Brant, o Marquês de Barbacena, que teria articulado a expulsão do Chalaça do Brasil, em 1830 – ainda que sob a alegação de ter sido nomeado embaixador em Nápoles. Expulsão que Chalaça devolveu na mesma moeda, quando teria levantado supostas provas de corrupção por parte de Barbacena, que foi publicamente humilhado e sumariamente demitido por D. Pedro.
Muitas das histórias do Chalaça ultrapassam o limite da realidade – ainda mais que ele próprio escreveu uma autobiografia. Ele faleceu em 1852, em Portugal, na mesma Lisboa onde nasceu, anos depois de D. Pedro, exercendo o cargo de secretário da Casa de Bragança. E sua história já rendeu aparições em outras mídias, como nos filmes e minisséries produzidos a partir da história de D. Pedro e no famoso livro de José Roberto Torero, intitulado, claro, O Chalaça, publicado em 1998. E, é claro, no quadrinho de Diniz e Eder.

O QUADRINHO
CHALAÇA, o álbum, narra as aventuras de Francisco Gomes da Silva e D. Pedro I em forma de episódios. No roteiro, Diniz separa as diversas situações em episódios, passa meio por alto os fatos mais importantes, os trechos que se referem à política, e usa um excelente recurso: faz o próprio Chalaça contar sua história, e colocando na boca do personagem muitas frases de efeito. Porém, ele pegou leve nas partes mais “picantes” da história do Chalaça, visando os leitores mais jovens. Se deteve mais na vida pessoal de D. Pedro e do Chalaça. E tudo usando de uma ironia fina, como se o próprio Chalaça quisesse que o leitor tomasse partido dele, e não das pessoas que ele prejudicou no decorrer da narrativa.
Na parte dos desenhos, Eder optou por uma arte caricatural, cheia de hachuras e em preto e branco, valorizando a época onde se passa a história, um estilo que lembra o do desenhista hispano-americano Sérgio Aragonés (famoso pelos cartuns da revista MAD e pelos desenhos da série Groo, o Errante). Aliás, caricatural a ponto de tornar os personagens quase irreconhecíveis, se compararmos com os retratos de época dos personagens. D. Pedro é identificável pela notória barba ligada às costeletas; mas a personagem Domitila é quase irreconhecível. As mulheres personagens da narrativa são, de certa forma, bonitas como o roteiro pede.
Os personagens históricos ganham um retrato pouco lisonjeiro do ponto de vista histórico: D. Pedro, por exemplo, é retratado como um pândego, mulherengo despreocupado, meio ingênuo e que, de certa forma, faz vista grossa às aprontações do Chalaça, mas que perde facilmente a paciência e fica furioso quando vê algo sair errado. O Chalaça é retratado como um tipo cínico e despreocupado, quase um Amigo da Onça (o célebre personagem dos cartuns do Péricles), que se importa mais consigo mesmo que com as pessoas que possa estar prejudicando; e Domitila carrega no rosto uma expressão de cinismo, como se estivesse tirando vantagem das situações – uma mulher infiel de propósito.
Os capítulos são apresentados da seguinte maneira: após a breve introdução, com um pouco do contexto histórico da vinda da Família Real ao Brasil, no primeiro capítulo, Chalaça narra sobre uma de suas paixões, Madame Clemence, de como a abandonou e depois a empurrou para D. Pedro, e do recurso cômico que os três utilizaram para que o marido de Clemence não desconfiasse de nada. No segundo capítulo, Chalaça nos conta como conheceu D. Pedro, numa pensão onde se reunia o “escol da capadoçagem” (encontrei esta expressão em um jornal de época uma vez: equivale a “a nata da boemia”), e como se tornou amigo dele depois de ter troçado do então Príncipe Regente sem saber que se tratava dele – e de ter se defendido de forma espetacular do guarda-costas de D. Pedro. No terceiro capítulo, Chalaça no conta sobre seu maior escândalo, quando foi flagrado por D. João, pai de D. Pedro, aos beijos com a criada Eugênia de Castro, do período que teve de se exilar com a mesma em uma fazenda em Itaguaí até baixar a poeira, de como abandonou e largou Eugênia em desgraça e de como, por causa de tudo isso, acabou perdendo um acordo de casamento. O quarto capítulo é sobre como D. Pedro e Chalaça conheceram Domitila, sobre o passado dela que Chalaça descobriu, um pouco sobre o momento da Independência brasileira e de como Chalaça arranjou o primeiro encontro entre Domitila e D. Pedro. No quinto capítulo, Chalaça relata na sua visão um dos casos mais nebulosos da imprensa do Primeiro Reinado: o atentado contra a vida de Luís Augusto May, editor do jornal oposicionista A Malagueta, que teria sido comandado por Chalaça – atentado que acabou sendo um tiro que saiu pela culatra. O sexto capítulo trata sobre o caso do Marquês de Barbacena: Caldeira Brant teria combinado com a segunda mulher de D. Pedro, D. Amélia, a expulsão forjada de Chalaça do Brasil, de como Chalaça conseguiu sua vingança e da reação pouco amistosa de D. Pedro ao receber a notícia sobre os supostos casos de corrupção do Marquês. E, por último, o epílogo, com a renúncia e a morte de D. Pedro e a morte de Chalaça. Só a Introdução e o epílogo são narrados em terceira pessoa, com fonte de letra diferente do restante do álbum. O restante é em primeira pessoa.
Mas o leitor não pense que vai encontrar aí toda a história do Primeiro Reinado. Como disse, Diniz passa por alto, quase que só cita os trechos informativos da História. Ficam faltando os bastidores da Constituinte de 1823 e a outorga da Constituição de 1824. Diniz nem faz grande referência ao tal “gabinete secreto”, apenas dá pistas aqui e ali. E Chalaça nem se preocupa em narrar sua infância e juventude em Portugal nem de sua vinda ao Brasil.
Outra coisa: casos vocês possam reparar, CHALAÇA foi todo balonado por computador. Ainda é aquele balonamento amador, com os balões já prontos e ajustados ao restante do texto. Outro defeito do álbum é a falta de um texto informativo sobre a época e o próprio Chalaça, para auxiliar o leitor leigo e desavisado e informar o quanto do que ele leu nas 86 páginas do álbum são verdade ou ficção. Ah: e também há pouca, quase nada, referência a escravidão do período. Afinal, os personagens mais importantes da narrativa eram os que estavam dentro do círculo do poder, nunca do povo.
Mas, ainda assim, é um álbum bem feito, bem pesquisado, uma quase obra-prima do humor histórico brasileiro. Vale a pena. E é leitura também para os jovens: embora tenha cenas de violência e mau comportamento, estas cenas são leves e não tem sexo – só cenas de galanteio e sorrisos de prazer das mulheres.
É isso aí.
Para encerrar: como não tive tempo de fazer algo melhor, resolvi fazer uns retratinhos de D. Pedro, contando fatos que vocês possivelmente não sabiam da história. Ou vocês já sabiam que D. Pedro, quando deu o Grito do Ipiranga, montava um jumento e não um cavalo? E, bem, sabem, a dívida externa já deixou de ser uma preocupação para o Brasil. Vocês, jovens, já não sabem como é ter de viver no Brasil sabendo que o governo tinha uma conta muito alta pra pagar com o FMI – e que quase nada sobrava para o nosso desenvolvimento, a menos que tivesse alguma coisa errada nos cálculos. Sabem, né?

Até mais!

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