terça-feira, 14 de agosto de 2012

DOSSIÊ RÊ BORDOSA - Réquiem para uma porraloca

Olá.
Na última postagem, falei sobre a vida e obra de Arnaldo Angeli Filho, um dos maiores cartunistas brasileiros vivos, oriundo da marginalia do quadrinho nacional, e da vida e morte de sua cria mais memorável, a Rê Bordosa.
Essa personagem viveu uma vida ativamente sexual, etílica e com ressacas constantes entre 1984 e 1987, quando Angeli tomou a decisão de matá-la. Embora tenha retomado a personagem em 1996, na forma de um diário que a porraloca supostamente deixou, ela nunca foi ressuscitada. E, até hoje, Angeli está devendo uma explicação convincente para justificar a morte daquela que, até então, era a sua “galinha dos ovos de ouro”, a personagem que, dos vários criados pelo cartunista paulistano, fazia mais sucesso.
Seria uma inspiração levada pelo consumo de drogas ilícitas? Seria a pressão para licenciar a personagem para merchandising? Seria só para chocar, mover a opinião pública? Seria apenas diversão? Ninguém sabe ainda. E o autor ainda não nos convenceu com suas explicações.
Uma tentativa de explicar esse homicídio, do qual Angeli saiu impune, foi feita em 2008, quando o diretor César Cabral e a produtora Coala Filmes, com patrocínio da Petrobrás, produziram o documentário DOSSIÊ RÊ BORDOSA.

E é sobre esse “documentário” que falarei hoje.
DOSSIÊ RÊ BORDOSA chama a atenção pela forma: o curta-metragem, de 16 minutos, apresenta-se como um documentário, e esse “documentário” foi todo feito em animação stop-motion (a tradicional “animação em massinha”).
César Cabral assina a direção, o argumento (com Carla Gallo) e o roteiro (com Leandro Maciel). A direção de fotografia é de Marcelo Trotta, e os bonecos foram confeccionados por Olyntho Tahara. A trilha sonora ficou por conta de três bandas de rock alternativas, Inocentes, Los Piratas e Grinders.
Documentários em animação não chegam a ser novidade. Histórias reais, de fatos e/ou pessoas, feitos em desenho animado, 2D, 3D ou stop-motion, tem pelo menos um pioneiro: Winsor McCay, cartunista e animador americano criador do Little Nemo in Slumberland, que contou, no curta-metragem The Sinking of Lusitania (1917) a tragédia de um navio americano torpedeado por um submarino alemão durante a Primeira Guerra Mundial, que determinou a participação dos Estados Unidos na referida guerra. Outro exemplo notável de documentários animados é o filme Valsa com Bashir, do israelense Ari Folman, produzido em 2008.
DOSSIÊ RÊ BORDOSA tem como principal trunfo ser o pioneiro documentário em animação brasileiro, ou pelo menos totalmente feito em animação. Não por acaso, ele foi amplamente premiado. Só para citar algumas premiações recebidas no ano de estréia: Menção Honrosa no festival È Tudo Verdade, de 2008; Prêmios de Melhor Roteiro e Melhor Trilha Sonora no festival Cine PE de 2008; Melhor Filme de Curta-metragem, segundo público, júri e crítica, no I Festival de Cinema de Paulínia; Melhor Curta-metragem de animação e melhor animação brasileira no festival Anima Mundi RJ e SP 2008; e Melhor Montagem em curta-metragem e melhor roteiro de curta-metragem no Festival de Gramado. E muitas outras premiações e exibições em festivais no Brasil e na América Latina.
Bem. O “documentário”, baseado “em fatos reais da obra fictícia de Angeli”, tenta esclarecer, alternando depoimentos de gente real e recursos de ficção, os motivos por que Angeli matou Rê Bordosa.
Foram entrevistadas pessoas reais. O então editor da revista Chiclete com Banana, Toninho Mendes; o cartunista Laerte, colega de Angeli; a secretária de Angeli, Paula Madureira; a ex-mulher do autor, Márcia Aguiar; o psicanalista Tales Ab’Saber; e o próprio Angeli. Todos, com exceção do último, falam um pouco sobre a suposta personalidade de Angeli à época do assassinato, como viam a vítima e seu relacionamento com o autor, tudo para traçar um perfil do "assassino" na tentativa de esclarecer os motivos da barbárie. Nem Angeli escapa à sabatina, mas dá respostas evasivas e não demonstra arrependimento nenhum pelo que fez.
Em cima dos depoimentos gravados, foi montado o roteiro; e os depoentes foram, em seguida, transformados em bonecos. É claro: os áudios são reais, mas o que vemos nas telas são “avatares” dos depoentes feitos com massinha e arame, dando seus depoimentos. E esses bonecos foram desenhados como se tivessem sido caricaturados por Angeli. Aliás, tudo, dos cenários aos bonecos, foram desenhados pelos produtores do curta dentro do conhecido traço do Angeli.
O documentário tem um tom de sensacionalismo, a começar pela locução de Lena Whitaker e Odayr Baptista, que narram em um tom de jornal policial.
Além dos entrevistados reais, também dão seu depoimento dois personagens do Angeli: o machão Bibelô e o punk escarrador Bob Cuspe (que aparece trabalhando como chapeiro numa lanchonete, mas sem deixar de cuspir). Estes contam suas versões sobre supostos encontros com Rê Bordosa, reconstituídos com recurso de “flashback”. O primeiro (voz de Paulo César Pereio) relata um encontro entre ele e ela em um bar; e o segundo (voz de Laert Sarrumor) relata que, enquanto escapava pelos esgotos, entrou na privada do banheiro de Angeli justo no momento em que este torturava a porraloca. E a Rê Bordosa, nas cenas de flashback, tem voz de Grace Gianoukas. Até mesmo o próprio Angeli, rejuvenescido, aparece nesses flashbacks - dublado por ele mesmo.
As cenas de flashback utilizam, na construção do roteiro, algumas das tiradas clássicas das tiras de Angeli. Quem acompanha o trabalho do autor há anos vai reconhecer algumas piadas utilizadas nas tiras e histórias em quadrinhos de Rê Bordosa, Bibelô e Bob Cuspe. Só faltou os depoimentos do guerrilheiro Meiaoito, se era para ser assim, afinal, nas tiras, ele também interagiu com a porraloca. Ah, eu ia esquecendo: no filme, também aparecem supostas imagens de arquivo que mostram que o gosto de Rê Bordosa pela bebida e pela transgressão vem desde a infância.
E, no fim das contas, ao final do curta, fica a sensação que Angeli, apesar de ter sido sabatinado à exaustão, não nos deu respostas conclusivas. Ainda mais agora, mais de vinte anos depois do crime, que seu cabelo branqueou.
Bem. DOSSIÊ RÊ BORDOSA é um dos filmes mais interessantes da nossa filmografia. Vale lembrar que foi realizado três anos depois do longa-metragem Wood & Stock – Sexo, Orégano e Rock n’ Roll, de Otto Guerra, que já adaptou os personagens de Angeli para animação. E, nesse filme, Rê Bordosa também ganhou sua versão animada, dublada pela cantora Rita Lee. As adaptações de quadrinhos para cinema ainda está engatinhando aqui no Brasil, mas tanto Wood & Stock como DOSSIÊ RÊ BORDOSA já são representantes da categoria no Brasil. O curta ainda é uma homenagem a Angeli e sua obra, e o muito que ele fez em favor do quadrinho brasileiro. Pode não ser confiável como documentário, mas quem se importa? Em se tratando de Angeli, nunca se sabe o que é verdade e o que é ficção. Se o que ele conta é verdade ou não, afinal, quem acreditaria na palavra de alguém que já foi usuário de drogas ilícitas e ainda por cima continua sendo um artista genial? Angeli tem o direito de ter mais o que pensar no que no passado.
Quem quiser assistir, o filme está disponível, completo, no YouTube. Há vários links que conduzem ao filme, completo ou dividido em partes. No caso, o seguinte link conduz ao filme inteiriço: www.youtube.com/watch?v=RmMIx8kmy7w. No mesmo site, também dá para achar o making-of do filme, mais detalhado.
E mais: para saberem mais sobre a obra, acessem o site oficial da produção: www.dossierebordosa.com.br/.
É isso aí. Qualquer dia desses, assim que tiver oportunidade, trago também a resenha do filme Wood & Stock – Sexo, Orégano e Rock n’ Roll. Não vai ser na próxima postagem, já aviso.
Para encerrar, e como não tenho mais o que trazer a vocês, mais uma parte da sequência inédita de tiras dos Bitifrendis, meus personagens praianos. Este arco já foi inteiramente publicado no blog dos meus personagens. E agora, está aqui, no Estúdio Rafelipe, para vocês apreciarem. Continuem acompanhando: em breve, mais novidades. E, em breve, Ionara fará sua aparição nas vidas de Carlão e Sidnelson, os Bitifrendis. 
Até mais!

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