sábado, 14 de janeiro de 2012

DERCY DE VERDADE - A perereca da vizinha tá presa na gaiola...

Olá.

Esta semana, tive a oportunidade de, nessas férias, já que estou podendo levantar mais tarde, assistir à mais recente microssérie da Rede Globo, DERCY DE VERDADE.
E vou fazer agora uma pequena avaliação do que vi na telinha.

Bem. Para começar, como todos devem saber, DERCY DE VERDADE foi gravado em 2011, escrito por Maria Adelaide Amaral – novelista que atualmente se especializou em séries biográficas e históricas – e dirigido por Jorge Fernando. E se propunha a mostrar o lado humano da atriz, humorista e desbocada Dercy Gonçalves (1905 – 2008). Quer dizer, quem conheceu Dercy Gonçalves, lembra da velha de maquiagem carregada, trajes extravagantes e boca suja que arrancava risadas do público em uma época em que “bunda” não era coisa para criança dizer em público, quanto mais adulto educado. Poucos sabiam da trajetória conturbada da mulher, que chegou à invejável idade de 101 anos em pleno vigor.
Maria Adelaide Amaral conhecia bem Dercy Gonçalves, e foi ela quem escreveu, em 1994, o livro Dercy de Cabo a Rabo, que se tornou base para a série. Portanto, com pequenas licenças imaginárias, tudo o que foi mostrado em DERCY DE VERDADE é, como diz o título, verdade. Ou quase tudo.
Bem. Quem conseguiu vencer o sono às 11 da noite e manter a TV ligada depois de mais uma edição do famigerado Big Brother pode conhecer o lado “família” da “véia safada”. Sua infância humilde, em Santa Maria Madalena, Estado de São Paulo; a relação conturbada com o pai, um alfaiate alcoólatra, que a batia e a tratava como uma prostituta; seu interesse inicial pelo mundo dos espetáculos; de quando conheceu o primeiro marido e companheiro de teatro, Eugênio Pascoal; o início difícil no mundo dos espetáculos ao lado de Pascoal, e a doença dele; a sua escalada no mundo dos espetáculos graças ao estilo espontâneo, dizendo tudo o que pensa, as improvisações e os palavrões; a relação com o investidor Valdemar Martins, com quem teve a única filha, Decimar – e ele nunca deixou de amparar mãe e filha; de quando conheceu o artista circense Vito Tadei, que a ensinou os prazeres do sexo; de quando finalmente parou de se iludir com os homens e a tocar a própria vida; seu grande sucesso nos teatros de revista, nos grupos teatrais maiores, na televisão e no cinema; de quando conheceu grandes companheiros que alavancaram sua carreira artística, como Oscarito, Chico Anysio, Carlos Manga, Walter Pinto e Boni; de seu casamento conturbado com o jornalista e agente Augusto Duarte; de como tentou e conseguiu dar uma vida digna à filha Decimar; de quando ela teve de enfrentar a censura da Ditadura Militar; e mais, mais, mais... que seria inútil enumerar aqui.
Bem. Quem cuidou de interpretar a comediante em diversas fases da vida foram três atrizes. Na infância, quem a interpretou foi Luiza Perissée, numa aparição de menos de um minuto (ah, qualé?!); a Dercy da adolescência à maturidade ficou a cargo da mãe, a eterna Tati Heloísa Perissée (apesar de ter sido interpretada por uma atriz que interpretava uma adolescente na Escolinha do Professor Raimundo, a Dercy Adolescente de Heloísa Perissée soava grotesco; entretanto, a Dercy mais madura caiu mais certo para a atriz); e a Dercy, no restante da vida, ficou a cargo de Fafy Siqueira (que, apesar de ter um timbre de voz menos grave que a da Dercy, é fisicamente parecida com ela, e também sabe imitar a comediante, inclusive com a sua gagueira).
Bem. A Dercy retratada na série começa como uma típica mocinha sofredora, mas já desbocada, maltratada pelo pai, pelo padre da cidade, pelo dono da casa noturna onde a moça entra de penetra. Mas, apesar de sofrida, não é nada tímida. Mesmo quando ela precisa trabalhar vendendo artigos no teatro, ou tentando se virar como prostituta (que foi quando conheceu Valdemar), Dercy já se mostra uma mulher mais determinada. Mas a grande mudança na vida dela ocorre depois que descobre ter sido traída pelo artista circense Vito Tadei: ela para de confiar em promessas e começa a traçar o próprio caminho, principalmente se for para dar uma vida decente à filha, Decimar. (Não há como não se sensibilizar com o sofrimento de Dercy).
E, já quando se consagra como atriz e comediante, Dercy se mostra uma mulher durona, que não aceita conselhos, não quer se adequar ao teatro mais “formal”, improvisava bastante, e, ainda por cima, comandava a vida da filha com pulso firme. E, ainda por cima, fica roubando constantemente a cena, eclipsando os demais companheiros de cena.
Não é pra menos: Perissée e Siqueira praticamente carregam a série nas costas sozinhas, e deixam em segundo plano os demais atores, não deixando nem espaço para eles se espraiarem bem: Fernando Eiras como Pascoal, o primeiro companheiro; Rocardo Tozzi como Vito Tadei; Cássio Gabus Mendes como Valdemar Martins (talvez o único na série que tenha conseguido ganhar mais destaque); Samara Felippo como a filha Decimar na adolescência e na idade adulta (a atriz mais eclipsada); Nizo Netto como o próprio pai, Chico Anysio (as sombrancelhas grossas da maquiagem deixaram o Chico Anysio dele muito caricato); Danton Mello como o grande produtor teatral Carlos Manga; Eduardo Galvão como o também produtor Walter Pinto, o primeiro a bancar a carreira de Dercy na televisão; Tuca Andrada, com um trejeito de malandro, interpretando Augusto Duarte, o marido que traía Dercy; Armando Babaioff como Homero, um grande fã e paixão platônica de Dercy; e, finalmente, Bruno Boni de Oliveira, num nepotismo desgraçado, interpretando o pai, José Bonifácio de Lima Sobrinho, o Boni, o grande produtor televisivo que levou Dercy para a Rede Globo.
Voltando ao retrato de Dercy, ainda é retratado na série que ela nunca se deixou intimidar, sempre deu um jeito de continuar trabalhando apesar das limitações, sabia calar a boca de quem precisava de um cala-a-boca, e, mesmo sob ameaça, sabia mandar quem a ameaçasse “tomate cru”. Ah, e não faltou o momento em que Dercy popularizou a canção “A Perereca da Vizinha”, que caiu na boca das crianças do período. Aliás, a versão instrumental da cançoneta de duplo sentido (que eu conheci, na infância, interpretada por outros músicos) é o tema da abertura da série. Caso não perceberam...
Ah, a propósito: o título da minissérie também faz referência a um dos programas, homônimo, que Dercy apresentava nos anos 70 - e, conforme retratado na série, foi o programa que mais ela fez ter problemas com a censura.
Bem. O fio condutor da série é a Dercy de Fafy Siqueira, em um palco, narrando a própria história ao público do teatro. E a série ainda era entremeada com imagens de arquivo, com trechos de filmes e depoimentos da própria Dercy (muito embora a voz que mais tenhamos ouvido em toda a série fosse a da Fafy Siqueira). Mas as melhores imagens de Dercy concentram-se no final da série, como o desfile, com os seios descobertos, no carnaval de 1991, pela escola de samba Viradouro, que a homenageou; suas aparições em novelas, como Que Rei Sou Eu, de 1989, e Deus nos Acuda, de 1992; e as aparições no Domingão do Faustão. Mas nenhuma referência ao programa que ela apresentava no SBT, no início dos anos 2000. E a cena final é emocionante. Mas não vou contar o final para vocês que não assistiram.
Apesar dos defeitos, DERCY DE VERDADE foi uma boa minissérie. Um retrato admirável de alguém que soube vencer na vida a partir de uma simples cusparada no palco. Uma lição para muitas pessoas – tem horas que só mandando os desafetos tomarem naquele lugar já nos faz sentir melhor. Podem criticar a Rede Globo ou a minissérie por si só; se Dercy estivesse viva, talvez ela devolvesse as críticas na mesma moeda. Ela não se importaria em ser xingada, se ela tivesse a oportunidade de xingar também. Calar-se não adianta. Repito, podem falar o que quiser.
Ah: está previsto para o ano que vem uma versão para os cinemas da minissérie. Quer dizer, uma condensação do que foi mostrado na TV, do mesmo modo que aconteceu com O Auto da Compadecida. Aguardemos a confirmação.
Para encerrar, captando o espírito da série, fiz um cartum sobre a necessidade de dizer palavrões. Quer dizer, eu não seria capaz de dizer palavrões, nunca fui, e se disse alguma vez, em voz alta, foi sem querer querendo. Mas que dá vontade, dá. E vocês não sabem como fico frustrado de não falar palavrões assim como minha mãe, meu pai, minhas irmãs... Não por acaso, o título: “Tributo a Dercy”.

Crédito do logotipo da série acima: http://blogtelevisual.com/.

Até mais!

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